A “crítica monumental” de Guerreiro do Divino Amor sobre supremacia e identidade

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Na 60ª Bienal de Veneza, o nome do artista que ocupa o pavilhão da Suíça chama a atenção: Guerreiro do Divino Amor. Escolhido por unanimidade para representar o país europeu, filho de mãe brasileira e pai suíço, ele apresenta uma obra tão provocativa quanto seu pseudônimo.

A história por trás do apelido é curiosa. Antoine Guerreiro era adolescente quando o pai começou a namorar uma pastora evangélica. Ela insistia para que ele frequentasse a igreja, ao que ele respondia, atiçando: formaria uma banda de heavy metal para tocar nos cultos. O nome do grupo? “Guerreiro do Divino Amor”.

Embora a banda nunca tenha se materializado, o nome permaneceu. “Gostei muito dele, ficou gravado na minha memória”, conta Guerreiro, em entrevista ao NeoFeed. “Quando comecei a produzir meu trabalho de arte, fiz dele minha assinatura. E, hoje, ele reflete minha missão de vida.”

Poucos artistas contemporâneos conseguem capturar a cacofonia e complexidade do mundo atual com tanta audácia quanto Guerreiro. Seu nome, uma justaposição provocativa entre conflito e transcendência, funciona como prelúdio para sua obra — uma mescla entre o sagrado e o profano, o passado e o futuro.

Na mostra italiana, em cartaz até novembro, Guerreiro apresenta O Milagre de Helvetia e Roma Talismano, o sexto e o sétimo capítulos de sua monumental saga Superfictional World Atlas, projeto em desenvolvimento desde 2004, quando ainda ele era estudante de arquitetura.

“Era um curso bastante experimental, onde tive espaço para investigar a imagem das cidades e fenômenos contemporâneos, como o marketing, as narrativas que as cidades tentam projetar de si mesmas, as guerras do mercado imobiliário, o planejamento urbano e a construção dessas cidades no imaginário coletivo”, explica Guerreiro. “Minha pesquisa sempre foi voltada para a ficção científica do que nos rodeia no presente.”

Formado em arquitetura em Grenoble, na França, e mestre na mesma área em Bruxelas, Guerreiro se firmou como artista no Brasil. Em 2013, ele veio para cá e, anos depois, estudou na Escola de Artes Visuais, do Parque Lage, no Rio de Janeiro. “Essa passagem pelo Parque Lage foi decisiva”, diz. “Foi lá que expus pela primeira vez no país e comecei a ter reconhecimento.”

Em casa, em muitos lugares

O trabalho de Guerreiro se iniciou com colagens analógicas, feitas a partir de imagens impressas e fotocopiadas, que ganharam movimento em suas produções audiovisuais. Sua pesquisa adquiriu dimensões espaciais em projetos mais recentes, como Mausoléu Mineral (2019, Museu da Pampulha) e Superfictional Sanctuaries (2022, Centre d’Art Contemporain, Genebra), sua primeira exposição individual na Suíça.

Guerreiro lembra dos comentários que ouvia de pessoas que visitavam a exposição europeia: “Isso tem de ir para Veneza”. Ao que ele respondia, incrédulo: “Ah, tá”. Quando o convite para participar da seleção da bienal italiana finalmente chegou, o artista ficou verdadeiramente surpreso.

Em janeiro de 2023, quando seu nome foi anunciado para ocupar o pavilhão, ainda não havia sido lançado o tema da edição da bienal — a primeira organizada por um curador sul-americano: o brasileiro Adriano Pedrosa, atual diretor artístico do Museu de Arte de São Paulo (Masp). Apenas em junho foi revelado o título da mostra: Estrangeiro em todo lugar.

O sentimento de não pertencer a lugar nenhum por muito tempo acompanhou Guerreiro. Hoje, não mais. “Percebi que dá para se sentir em casa em muitos lugares”, reflete. “Ou talvez seja uma questão de momento. Com o tempo, a gente vai colando os pedaços.”

O artista foi escolhido por unanimidade para representar o pavilhão da Suíça, na Bienal de Veneza (Foto: Divulgação)

Em “O Milagre de Helvetia”, o artista reflete sobre como foi construída a imagem de perfeição e pureza, que o mundo conhece e admira da Suíça (Foto: Divulgação)

As colagens de “O Milagre de Helvetia” são o sexto capítulo da monumental “Superfictional World Atlas”, em desenvolvimento desde 2004 (Foto: Divulgação)

“Em Roma Talismano”, o artista critica as ideias de superioridade moral e política dos romanos (Foto: Divulgação)

Para Andrea Bellini, curador da mostra, o trabalho de Guerreiro faz o público sentir-se “estrangeiro em sua própria verdade”

No pavilhão da Suíça, Guerreiro integrou vários fragmentos de sua investigação, utilizando ao máximo os recursos tecnológicos disponíveis. “A bienal também foi uma oportunidade para realizar sonhos”, afirma.

O artista cobriu o espaço com papel de parede , imitando texturas de mármore, e estendeu um tapete vermelho por toda a passagem onde os visitantes caminham. “São elementos ostensivos da arquitetura do poder, presentes em igrejas, bancos e condomínios de luxo”, explica.

Logo na entrada da primeira sala, os visitantes são recebidos por uma fonte adornada com uma escultura de uma deusa romana, que cospe água pela boca e lança um laser azul pelos olhos. Essa é a epígrafe do que o público encontrará em O Milagre de Helvetia, projetado em uma cúpula que remete à experiência de um planetário.

Na projeção imersiva, ele cria uma colagem de imagens, por meio da qual confronta os ideais característicos da sociedade suíça. “Há anos, reflito sobre como foi construída a imagem de perfeição e pureza que o mundo conhece e admira da Suíça. Mais do que um país, trata-se de um conceito de apoteose de uma civilização”, afirma. Segundo Andrea Bellini, curador da mostra, o trabalho de Guerreiro faz o público sentir-se “estrangeiro em sua própria verdade”.

Espelho caleidoscópico

Um corredor conecta O Milagre de Helvetia à instalação Roma Talismano, onde uma ópera é projetada em holograma, complementada por um painel que remete a fliperamas. A letra da ópera foi composta pelo próprio Guerreiro. “Eu só não atuei”, brinca o artista, que foi o roteirista, diretor, diretor de arte e editor de efeitos especiais.

Na ópera, a letra critica as ideias de superioridade moral e política dos romanos. A protagonista, a artista Ventura Profana, encarna a loba Capitolina. Ela canta as façanhas de três animais alegóricos: a loba, a cordeira e a águia, interpretadas por amigas de Guerreiro, Amanda Seraphico e Adriana Carvalho, respectivamente. “É um trabalho em família. A maioria das pessoas que atuam no meu trabalho são amigas com quem já morei”, diz o artista.

Para ele, esses animais míticos desempenham papéis centrais na constituição da identidade branca e sua suposta superioridade: a loba como mãe universal dos “povos superiores”; a águia como símbolo da supremacia bélica romana; e o cordeiro, na Roma cristã, personificando pureza e inocência.

A exposição culmina em um pátio onde colunas romanas estão tombadas, enquanto uma escultura gigante da Loba, sobre o tronco de uma árvore que ultrapassa a altura do muro, permanece em pé.

Essa instalação é uma crítica aos monumentos masculinos espalhados por Roma. “É a cidade com mais bustos de macho do universo”, observa Guerreiro. “Há uma presença patriarcal muito forte.”

Atualmente, ele está adaptando Roma Talismano para um filme, a ser apresentado na Bienal de Bangkok, na Tailândia. No Brasil, até 5 de outubro, sua obra Clube da Criança integra a exposição coletiva A confissão, o diário e o retrato, em cartaz na galeria Marília Razuk, em São Paulo.

Em um mundo cada vez mais fragmentado, a obra de Guerreiro se apresenta como um espelho caleidoscópico da realidade contemporânea, convidando o público a questionar as narrativas que moldam nossa compreensão do mundo.





Fonte: NeoFeed

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