A “redescoberta” de Clarice Lispector vai do pop ao erudito

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Clarice Lispector está por toda parte. Está nos memes e nas teses acadêmicas; nas conversas de bar e nos congressos internacionais de literatura; nas edições de bolso e nas coleções comemorativas; no pop e no erudito; na razão e no sensível.

Em 21 de setembro, foi lembrada no Festival de Cinema de San Sebastián, na Espanha. Em duas ocasiões, a atriz australiana Cate Blanchett citou a escritora, ao agradecer o prêmio pelo conjunto de sua obra. “Vivemos em tempos incertos e busco coragem em Clarice Lispector, uma autora brasileira que é um gênio absoluto”.

Como uma espécie de ímã, com sua personalidade indecifrável e sua obra complexa, Clarice atrai pessoas de todos os tipos, em todos os cantos do mundo. Quase cinco décadas depois de sua morte, em 1977, seus livros continuam sendo reeditados e inspiram, direta ou indiretamente, outros artistas.

“Tantas referências e citações, como a de Cate Blanchett, são a prova de que Clarice continua circulando”, diz a pesquisadora e biógrafa Teresa Montero, em entrevista ao NeoFeed.

E interesse da academia é, segundo ela, um dos grandes responsáveis pela difusão da obra da escritora pelo mundo. “Entre 1991 e 2020, 60 projetos de tradução de obras de Clarice Lispector financiados pelo programa da Biblioteca Nacional.” Mais do que Machado de Assis.

Mas o que explica tamanho fascínio pela escritora? Talvez Clarice seja uma espécie de aporia, algo cuja explicação é tão óbvia quanto impossível de se expressar em palavras.

É como o que disse Santo Agostinho quando tentou explicar o que seria o tempo: “Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei”, escreveu em Confissões.

Ainda assim, é possível fazer algumas inferências sobre o interesse permanente (e crescente) pela autora. Ao revisitarmos sua biografia, por exemplo, podemos supor que a diversidade da obra e a variedade de lugares onde esteve talvez tenham contribuído.

Clarice escreveu romances, novelas, contos, cartas, crônicas de jornal e “textos”, como costumava chamar as produções impossíveis de encaixar em qualquer gênero.

Nasceu na Ucrânia, em 1920, mas chegou no Brasil ainda bebê. Sua dicção cheia de “erres” nada tinha a ver com sotaque, como muitos pensam. Era resultado da “língua presa”, que ela nunca quis corrigir cirurgicamente.

Viveu no Recife, no Rio de Janeiro e em Belém. Casou-se com o diplomata Maury Gurgel Valente e, para acompanhar o marido, morou nos Estados Unidos, na Itália e na Suíça. Morreu um dia antes de completar 57 anos, em 9 de dezembro, vítima de um câncer fulminante.

Influência em diferentes artes

Mas a biografia não dá conta de mostrar como, ainda hoje, Clarice continua impactando de maneira tão íntima e criativa um sem fim de artistas, das mais diferentes artes.

Conceição Evaristo, em seu último romance, Macabéa, flor de mulungu, reescreve a história da protagonista de A hora da estrela, novela de 1977. No ano passado, o livro da escritora mineira esteve entre os mais vendidos da Festa Literária Internacional de Paraty.  A mesma personagem virou filme, em 1985, nas lentes da cineasta Suzana Amaral.

Quem bebeu recentemente em Clarice foi Itamar Vieira Júnior. No conto Doramar e a odisseia, ele faz uma referência a uma das crônicas mais famosas da autora, Mineirinho. O espetáculo de dança Água viva, levado a Nova York, em 2023, foi inspirado no mesmo romance e mereceu reportagem no jornal The New York Times, sob o título: “To Seize de Fleeting: Making Clarice Lispector Dance”.

No Brasil, também no ano passado, foi lançado o filme A paixão segundo G.H, do cineasta Luiz Fernando Carvalho, baseado no romance homônimo. De 1964, o livro é definido pela premiada autora italiana como “extraordinário”, em Frantumaglia. 

E assim segue Clarice inspirando e encantando quem a lê. “Ela é uma influência tão grande que um dos grandes esforços que faço como escritora é não imitá-la”, diz a psiquiatra e escritora paulista Natalia Timerman, ao NeoFeed. Já Aline Bei aprendeu com Clarice  o quão longe uma palavra pode chegar quando entra, por fim, no corpo”, conforme relata ao NeoFeed.

A “internacionalização” da escritora

Autora de diversos livros sobre Clarice, entre eles O Rio de Clarice e a biografia Eu sou uma pergunta, a pesquisadora Teresa traça um panorama histórico sobre o interesse global pela escritora. Segundo ela, tudo começou ainda no fim dos anos 1940 e início dos 1950.

Na época, Clarice, que já chamava atenção da crítica e da classe artística brasileira, passou também a atrair a curiosidade dos estrangeiros. “Com a intenção de expandir sua influência sobre os países latino-americanos, os Estados Unidos passam a financiar bolsas de estudos voltadas à pesquisas sobre a cultura da região”, explica. O Brasil entrou no foco e, juntamente com Jorge Amado, a escritora passou a ser lida pelos americanos.

“Vivemos em tempos incertos e busco coragem em Clarice Lispector, uma autora brasileira que é um gênio em absoluto”, disse Cate Blanchett, ao agradecer o prêmio, na Espanha

A pesquisadora e biógrafa Teresa Montero explica que o interesse internacional pela obra de Clarice começou entre os anos 1940 e 1950, quando os Estados Unidos começaram a financiar a cultura brasileira, de modo a aumentar sua influência na América Latina. Na foto, ela está ao lado da estátua da escritora no bairro carioca do Leme (Foto: Arquivo Pessoal)

“Clarice Lispector é uma influência tão grande que um dos grandes esforços que faço como escritora é não imitá-la”, diz a psiquiatra e escritora paulista Natalia Timerman (Foto: Arquivo Pessoal)

Em 1985, a cineasta Suzana Amaral levou “A hora da estrela” para o cinema. No filme, a imigrante nordestina Macabéa é interpretada por Marcélia Cartaxo (Reprodução themoviedb.org)

No ano passado foi a vez de o romance “A paixão segundo G.H.” ser transformado em filme pelo Luiz Fernando Carvalho. Maria Fernanda Cândido vive a protagonista (Reprodução themoviedb.org)

“Muita gente deve achá-la antipaticíssima, mas eu achei linda, profunda, estranha, perigosa. É impossível sentir-se à vontade perto dela”, escreveu Caio Fernando Abreu (Reprodução Instagram @claricelispector100)

A escritora está entre os “pensadores” mais citados em memes na internet (Reprodução Instagram @claricelispector100)

O que diria Clarice ao ver suas personagens, tão densas e complexas, transformadas em “humor do dia”, nas redes sociais? (Reprodução Instagram @claricelispector100)

Anos mais tarde, na década de 1970, é o movimento feminista que contribui para que os olhares se voltem para ela. “As mulheres ocupam de fato as universidades e leem principalmente escritoras”, lembra Teresa. Isso aconteceu também na Europa, sobretudo na França, onde Clarice passou a ser traduzida com entusiasmo.

Paralelamente à repercussão da academia e da crítica, foi ganhando força a aura mítica em torno da escritora ainda em vida. Os relatos de quem a conheceu quase sempre descrevem uma figura muito bonita, misteriosa, de comportamento e gestos peculiares e extremamente sensível, chegando a cair no choro com pessoas que mal conhecia.

“Muita gente deve achá-la antipaticíssima, mas eu achei linda, profunda, estranha, perigosa. É impossível sentir-se à vontade perto dela”, escreveu Caio Fernando Abreu a Hilda Hilst, naquela época.

Clarice era conhecida pelos telefonemas dados a conhecidos e desconhecidos a qualquer hora do dia e da noite. E fazia os pedidos (ou exigências) mais inusitados.

“Mais sozinha do que pensava”

Certa vez, em 1975, amanheceu determinada a falar pessoalmente com Ana Maria Machado. Tinha acabado de ler a reportagem assinada pela jornalista, no Jornal do Brasil, sobre o crítico francês Roland Barthes, que havia sido orientador de Ana Maria.

Assim que pode retornar as ligações, explicou que gostaria muito de ir até Clarice, mas só poderia fazer isso à noite, depois do expediente. Muito contrariada, a escritora insistiu e ligou diversas vezes até Ana Maria ceder. Depois de um início de conversa um pouco confuso, o motivo de tanta ansiedade foi ficando mais claro.

“Fui compreendendo que o que realmente a atraía era a ideia de que um livro pudesse ser todo feito de fragmentos — algo que eu mencionara de passagem em meu artigo, a propósito do então recentíssimo lançamento de Roland Barthes par Roland Barthes. Interessou-se também por outro ponto a que me referi: a questão que Barthes formulou e buscou desenvolver sobre ‘por onde começar?”, escreve Ana Maria, em artigo publicado na revista Serrote, em 2020.

Na época, Clarice estava às voltas com a escrita de A hora da estrela, publicado dois anos mais tarde. A obra estava completa, só que havia sido escrita em fragmentos soltos que precisavam ser reorganizados.

“Eu não poderia jamais tocar naqueles fragmentos de sua obra para ajudar a ordená-los. O livro era só seu, de mais ninguém”, justificou Ana Maria.

Ao que Clarice reagiu: “Então estou mais sozinha do que pensava.”

Dois dias depois, Clarice telefonou de novo. “Calma, quase carinhosa, queria me agradecer. Disse que respeitava muito minha atitude e via que eu tinha razão. E que eu tinha sido corajosa em dizer não. Poucas pessoas teriam essa dignidade, garantiu. Guardei uma frase: ‘Você me ajudou a enfrentar a verdade”, contou a jornalista.

A biografia, os relatos sensíveis, as pesquisas e tantas histórias, sem dúvida, nos ajudam a compreender os motivos pelos quais Clarice continua tão viva e influente. Mas talvez só ela mesma tenha a melhor resposta do porquê de tanto fascínio: “Sou tão misteriosa que não me entendo”.





Fonte: NeoFeed

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