Charles Chaplin: o “espírito de um vagabundo” sob a ótica de suas origens ciganas

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SAN SEBASTIÁN – Décadas após a morte de Charles Chaplin (1889-1977), a família do inglês encontrou a única carta que ele guardou, durante a vida. Entre as milhares de correspondências recebidas ao longo da carreira, a maioria de fãs, aquela, trancada a chave na gaveta da escrivaninha, era de um desconhecido. Nela, ele chamava Chaplin de “mentiroso”.

“Meu avô recebeu a carta depois de publicar seu livro de memórias [Minha Autobiografia, de 1964], em que afirmava ter nascido em Londres. Escrita por um cigano inglês chamado Jack Hill, dizia que meu avô estava mentindo”, conta a neta, Carmen Chaplin. Ele teria nascido em caravana no parque de Black Patch, conhecido acampamento de ciganos nos arredores de Birmingham [cidade a duas horas da capital].”

É ela quem dirige o documentário concebido para mergulhar na herança romani (pouco explorada) de Chaplin, referência na história do cinema e um dos diretores e comediantes mais influentes de todos os tempos.

Exibido fora de competição nesta 72ª edição do Festival de Cinema de San Sebastián, Chaplin: Spirit of the Tramp “Chaplin: o espírito do Vagabundo”, em tradução livre) reconstrói a carreira do gênio de uma perspectiva cigana e, consequentemente, aborda a longa perseguição sofrida pelo povo romani.

“Meu avô disse publicamente que era cigano, mas isso não teve repercussão na época”, conta Carmen, em entrevista ao NeoFeed, em sua passagem pelo evento de San Sebastián, no norte da Espanha, a ser encerrado neste sábado.

“Chaplin aprendeu sozinho a tocar violino, acordeão e piano, além de compor música sem ter a formação tradicional”, diz a cineasta, de 47 anos. “Ser autodidata em música faz parte da cultura cigana.”

O estopim para a realização do documentário foi justamente a carta, encontrada pela tia de Carmen, Victoria Chaplin, na residência da família, em Corsier-sur-Vevey, na Riviera Suíça.

Victoria só se atreveu a abrir a gaveta do pai, com a ajuda de um serralheiro, anos depois da morte da mãe, Oona O’Neil, em 1991. Na época, os herdeiros começavam a planejar a transformação da propriedade em uma casa-museu, o que aconteceu em 2016.

Sem certidão de nascimento

“Mesmo que a sua origem cigana não possa ser provada, repassamos aqui o trabalho de meu avô pelas lentes do povo romani”, afirma Carmen, filha de Michael Chaplin, primogênito do artista com Oona.

Para ela, o fato de Chaplin nunca ter encontrado sua certidão de nascimento talvez seja um indicador de que ele tenha mesmo nascido em uma família que se deslocava muito e não se preocupava com questões burocráticas.

“Mas não se trata de um documentário sensacionalista”, comenta Carmen, lembrando que o avô, figura chave do cinema mudo e mestre da comédia pastelão, sempre teve orgulho das suas raízes.

Antes de receber a carta (que possivelmente escondeu por ter sido chamado de “mentiroso”), Chaplin já tinha ouvido da própria mãe, Hanna, que sua avó materna, Mary Ann, era romani. A revelação aconteceu pouco antes de ela morrer, quando Chaplin tinha 39 anos.

“O meu avô dizer que era cigano, quando ele já era uma figura conhecida, deu mais colorido à sua imagem”, afirma Carmen. “Mas se a mãe dele tivesse admitido isso, ela não teria conseguido trabalho.” Hanna era atriz, cantora e dançarina inglesa, que atuava na época em espetáculos na linha do teatro de revista.

Carmen tem poucas lembranças do avô, pois quando ele morreu, ela só tinha cinco anos (Foto: Michael Seiber)

O documentário está estruturado em com fotografias, vídeos caseiros e trechos de filmes (Foto: Roy Export Co. Ltd)

O documentário é narrado por Michael, filho mais velho de Chaplin com Oona O’Neil e pai de Carmen (Foto: “Chaplin: Spirit of the Tramp”)

Obra-prima de Chaplin, “O Grande Ditador”, de 1940, também é revista pela ótica do povo romani (Foto: Reprodução themoviedb.org)

Ainda sem data para estrear no Brasil, Chaplin: Spirit of the Tramp é narrado pelo filho Michael, quem costura toda a narrativa cigana no documentário, estruturado com fotografias, vídeos caseiros e trechos de filmes.

Além de entrevistas com membros da família, há depoimentos de personalidades como Emir Kusturica, Johnny Depp, Lita Cabellut e Farruquito, que traçam as características ciganas de Chaplin.

Até o personagem mais icônico de Chaplin, o andarilho Vagabundo, teria um quê de romani, graças ao senso de humor, ao gosto pela tragicomédia e ao porte digno e alinhado (mesmo vivendo na pobreza).

Ainda que o artista não tivesse consciência disso, o documentário sugere que a influência cigana pode ter sido instintiva. Sobretudo na criação de seus personagens sobreviventes, que levavam a vida com doçura, ingenuidade e esperteza.

Perseguição macartista

“Chaplin não tinha respeito pela burguesia e pelos seus valores”, destaca a filha, Geraldine, em depoimento no filme. Ela lembra que, enquanto a família morava na Califórnia (antes de deixar os Estados Unidos, quando o pai começou a sofrer perseguição ideológica do macartismo), uma organização de mulheres “benfeitoras do Estado americano” procurou o diretor para reclamar: seus filmes não prestavam o devido respeito às regras.

A obra-prima de Chaplin, O Grande Ditador, de 1940, uma sátira profética a Adolf Hitler e ao nazismo, também é revista pela ótica do povo romani.

Aqui o clássico em que Chaplin conseguiu prever o rastro de horror, deixado pelo Füher, é interpretado como uma possível consequência de traumas herdados por várias gerações de ciganos perseguidos.

“De um modo geral, o legado mais importante deixado por meu avô é a humanidade de sua obra. Todos conseguem se conectar com seus personagens, independentemente de classe social”, comenta Carmen.

Ela tem poucas lembranças de Chaplin, já que quando ele morreu, ela tinha apenas cinco anos. “Mas, como todo mundo, cresci vendo os seus filmes”, diz a documentarista, como quem consola a si mesma.





Fonte: NeoFeed

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