Com a vitória oficialmente confirmada na eleição presidencial dos Estados Unidos, realizada nesta terça-feira, 5 de novembro, o candidato republicano Donald Trump derrotou a oponente democrata Kamala Harris com relativa vantagem e ainda comemorou a maioria republicana na Câmara e no Senado.
A reação inicial no mercado financeiro foi de euforia na manhã de quarta, 6, com ações subindo no pre-pregão e o dólar se valorizando. Trump, que prometeu “curar” os EUA e iniciar uma nova “era dourada” em seu discurso da vitória durante a madrugada, terá pela frente um desafio: tentar conter o crescimento da dívida pública dos EUA, de US$ 34 trilhões, de longe, a maior do planeta.
Essa conta, que vem crescendo como uma bola de neve nos últimos anos e hoje equivale a 99% do Produto Interno Bruto (PIB) americano, representa mais do que o dobro do segundo colocado do ranking, a China, com dívida batendo em US$ 13,8 trilhões.
A dívida pública dos EUA cresceu com o total desinteresse dos últimos ocupantes da Casa Branca em atacar o problema – incluindo Trump – e ganhou tração com pandemia, que levou o governo americano, já sob comando de Joe Biden, a liberar um auxílio assistencial de US$ 1,7 trilhão.
Antes do início da atual campanha presidencial, o Gabinete de Orçamento do Congresso (CBO, na sigla em inglês), órgão do Legislativo americano, calculou que a dívida pública dos EUA vai subir 64% nos próximos dez anos para US$ 56,9 trilhões – engordando num ritmo anual de US$ 3 trilhões até 2034.
Apesar do fardo, o tema sequer foi abordado pelos dois candidatos durante a campanha. Na verdade, ambos foram na direção contrária: fizeram promessas que vão aumentar – e muito – o endividamento. Trump e Harris anunciaram apoio aos maiores impulsionadores do aumento dos gastos, a Previdência Social e o Medicare, que concentra os gastos públicos de saúde.
Ambos também prometeram estender trilhões de dólares em cortes de impostos que expiram no fim de 2025, em meio a um acordo bipartidário de que o imposto de renda federal não deve aumentar para pelo menos 97% das famílias.
Com Trump na Casa Branca, o endividamento americano tende a crescer com mais força. O novo presidente deve adicionar US$ 7,75 trilhões à dívida pública nos próximos dez anos, caso seus planos fiscais sejam inteiramente implementados. Durante seu primeiro mandato (2017-2021), Trump já havia acrescentado US$ 8,4 trilhões à dívida ao longo de uma janela de 10 anos.
“Nenhum presidente dos EUA na história, republicano ou democrata, recebe uma estrela dourada ou um Prêmio Nobel por controlar os gastos, os déficits e nossa dívida”, diz o deputado republicano Jodey Arrington, do Texas, presidente do Comitê de Orçamento da Câmara.
Essa escalada da dívida, porém, preocupa economistas e agentes do mercado, assustados com o possível impacto no médio prazo na economia americana, incluído aumento da inflação e das taxas de juros, que poderiam restringir o crescimento econômico.
Larry Fink, cofundador da gestora de ativos BlackRock, com US$ 11,5 trilhões sob gestão, publicou um artigo na terça-feira, 5 de novembro, no The Wall Street Journal, no qual chama a dívida pública de “calcanhar de Aquiles” de uma economia dos EUA forte.
Segundo ele, disciplina fiscal é importante, mas qualquer caminho realista para o país sair da dívida tem de depender principalmente do crescimento, com investimento em inteligência artificial e infraestrutura. “Precisamos aumentar o tamanho da nossa economia para que o que devemos se torne menor em relação ao que ganhamos.”
Outros economistas advertem que o aumento da dívida pública tende a atrapalhar a política monetária do Federal Reserve (Fed, o banco central dos EUA), que já cortou 0,5 ponto percentual da taxa de juros na última reunião e deverá cortar mais 0,25 pp na próxima na quinta-feira, 7 de novembro.
“A percepção de muito mais estímulo fiscal chegando sugere que a inflação pode ser mais difícil de controlar”, afirma Sara House, economista sênior do banco Wells Fargo. “As taxas de juros podem precisar ficar um pouco mais altas, por um período maior.”
Pujança dos EUA
Os números negativos de endividamento ajudam a explicar por que, das três grandes agências de risco, duas rebaixaram o AAA, nota máxima de crédito de dívida dos EUA.
Por outro lado, é fato que o rápido crescimento da dívida pública americana – que aumentou 10 vezes nos últimos 35 anos, avançando quase três vezes mais rápido do que o PIB – tenha impactado com menos força do que poderia se imaginar, a ponto de se tornar um tema irrelevante numa campanha presidencial.
A principal explicação está na constatação da pujança da economia americana, que representa sozinha 26,1% do PIB global. A despeito da dívida – que este ano vai custar US$ 890 bilhões apenas em pagamentos de juros, mais do que o orçamento de Defesa -, os EUA crescem a um ritmo anual de 2,8% e taxa de emprego recorde.
Basta comparar esse crescimento do PIB dos EUA com o de outros países ricos, como o de 1,1% da economia britânica e o 1,0% da União Europeia em 2024. A dívida pública da França, equivalente a 110% do PIB, impacta muito mais na economia local do que a dívida dos EUA internamente.
Estender a comparação a países emergentes, como o Brasil, amplia ainda mais o fosso entre os EUA e o resto do mundo. Para se ter uma ideia, o déficit americano do ano fiscal encerrado em 30 de setembro foi US$ 1,9 trilhão, equivalente a 6% PIB dos EUA.
Por aqui, o governo federal está sendo bombardeado pelo mercado para apresentar um pacote de corte de gastos visando a reduzir o déficit de 2024, estimado em R$ 68,83 bilhões, equivalente a 0,7% do PIB e, mesmo assim, fora da meta fiscal.
“O debate fiscal é mais saudável no Brasil do que nos EUA”, afirmou André Esteves, chairman e sócio sênior do BTG Pactual, durante evento do banco, há um ano. ”A melhor estratégia [para o Brasil] é perseguir a meta de zerar o déficit, ir até onde podemos chegar, e depois vemos o que fazer.”
Neste ano, Esteves voltou ao assunto. Para ele, a situação fiscal brasileira tem algumas semelhanças com os Estados Unidos, que também enfrentam um déficit elevado. O chairman do BTG destacou, no entanto, que essa é uma questão no debate público brasileiro, enquanto os candidatos à presidência americana não tocaram no tema.
Alguns fatores, porém, reforçam essas diferenças. A dívida dos EUA cresceu seguidamente nos últimos anos, mas as consequências temidas não se materializaram. As taxas de juros, pelo menos até 2022, permaneceram baixas. O fato de a dívida pública ser lastreada pelos títulos do Tesouro dos EUA – um ativo valorizado e procurado por vários países – também ameniza o impacto.
Há ainda o trunfo da moeda: o dólar continua sendo a moeda de reserva mundial. A China nunca foi um exemplo confiável para o mercado global trocar o dólar pelo yuan, enquanto o bloco europeu peca com seu euro por ter união monetária, mas não fiscal.
Economistas têm outras justificativas para o impacto limitado da dívida pública americana na economia interna. Uma parte pode até ajudar a alimentar inflação, mas o que pesou mais no aumento de preços foi a política fiscal expansionista do pós-pandemia, que levou a inflação a 9%, índice elevadíssimo para os padrões americanos.
A crise de 2008, por exemplo, que não teve expansão fiscal, não gerou inflação. Ou seja, os EUA de 2024 não são a Grécia de 2007. Há risco, mas não há crise fiscal.
Com isso, o efeito no curto prazo mais preocupante desse endividamento nos EUA seria político: em janeiro de 2025, vence o prazo para o Congresso americano renegociar o teto da dívida.
Em janeiro de 2023, quando venceu o prazo anterior, a divisão no Congresso arrastou a disputa por cinco meses, a ponto de o Tesouro americano ficar ameaçado por falta de liquidez. Mesmo assim, o acordo acabou sendo fechado e a economia seguiu seu curso, sem maiores impactos.
Com maioria assegurada nas duas Casas, Trump não deverá ter dificuldade de renegociar esse teto. Outro gatilho à espera de Trump na Casa Branca é a expiração iminente de grande parte da lei tributária de 2017.
Se o Congresso não agir até o fim de 2025, os impostos aumentarão para a maioria das famílias, um caminho para a redução do déficit que Trump seguramente deve descartar. Ou seja, nos próximos quatro anos, a dívida pública dos EUA tende a continuar sendo um tema solenemente ignorado na agenda da Casa Branca.