O paulistano Rafael Cagali é pouco conhecido no Brasil. Mas, aos 43 anos, ele é o único chef de cozinha brasileiro com duas estrelas Michelin conquistadas fora do país. Seu restaurante, o Da Terra, no Town Hall Hotel, em East London, está entre os mais celebrados da capital inglesa.
Localizada ao norte do rio Tâmisa, antigo centro industrial e área de renovação da cidade, a casa oferece um menu degustação, com dez etapas, a £ 250 (o equivalente a quase R$ 1,8 mil), sem bebidas. De vinhos premium a drinques sem álcool, há vários tipos de harmonização, cujos preços variam de £ 150 a £ 300 (algo entre R$ 1 mil e R$ 2,1 mil). No site do restaurante, está o aviso: “Reserve uma média de 3 horas para a experiência completa”.
Vivendo no exterior desde o início da década de 2000, Rafael tem um português perfeito, mas com forte sotaque inglês. Com essa pronúncia particular, que também não é a de um estrangeiro, ele explica seu mais recente tour pelo Brasil.
De São Paulo a Salvador, de restaurantes estrelados à casa do pais em Atibaia, no interior paulista, veio acompanhado por três ingleses, da equipe do Da Terra: o marido Charlie Lee, gerente-geral e responsável pelo salão; o sous chef Marcos Tuttiett e a sommelière Maria Boumpa.
Por aqui, Rafael cozinhou no Tujú, com Ivan Ralston, na capital paulista, e no Origem, com Fabrício Lemos e Lisiane Arouca, em Salvador. Também passou uns dias em Trancoso, no litoral sul baiano, a convite de Morena Leite, sócia do Capim Santo.
“O Brasil para mim é uma redescoberta. Saí daqui com 21 anos, então, mais de metade da minha vida já foi fora. Morei na Itália, na Espanha, vivo na Inglaterra”, diz o chefe, em conversa com o NeoFeed.
E ele completa: “Agora sou outra pessoa e procuro essa conexão com o lugar de onde vim, para sentir um pouco de orgulho das raízes. Me identifico com a cultura daqui”.
Na Feira de São Joaquim
A curiosidade pelos produtos brasileiros o levou a percorrer a Feira de São Joaquim, em Salvador, a mais popular da cidade, frequentada pela população de baixa renda.
É um local representativo da cultura baiana, fora dos roteiros turísticos.
Caminhar pela feira é um desafio e uma visita antropológica. Ali há um pouco de tudo – de massa para acarajé a itens para a prática do candomblé, de ervas a animais vivos para sacrifício.
O espaço entre as barracas é estreito e, além das pessoas, é preciso desviar o tempo todo de motocicletas e de carregadores de frutas, verduras e tudo o mais.
Durante o percurso, Rafael parava nas bancas, conversava com os comerciantes e experimentava produtos. Comeu acarajé frito na hora e de recordação levou um cofre-porquinho feito em barro, comprado em uma loja de artesanato.
À noite, cozinhou no Origem, onde assinou dois snacks e dois pratos. Sua cozinha é leve e extremamente delicada. “Já me disseram”, afirma, com simplicidade. Ele não gosta de carimbos e se define como alguém que faz uma cozinha contemporânea com foco nos ingredientes, um reflexo das influências dos lugares por onde andou.
Um estrela em oito meses
Em sua jornada culinária, trabalhou com alguns dos nomes mais cultuados na cena gastronômica internacional. Entre eles, Helston Blumental, do londrino Fat Duck, e os espanhóis Quique Dacosta e Martin Berasategui, donos de restaurantes homônimos. Ainda circulou pela Itália, onde foi cozinheiro em Verona e no Lago de Garda — para fazer jus à origem do bisavô italiano.
Daí conseguiu um financiamento e abriu o Da Terra, em 2019, imediatamente consagrado pela crítica. Em oito meses de casa, Rafael conquistou sua primeira estrela Michelin. Em 2021, foi premiado com a segunda estrela, que conserva até agora.
Vestido com bermuda, camiseta e boné, sem qualquer estrelismo, Rafael contou um pouco de tudo que tem acontecido em sua vida, durante uma visita à praia de Ponta de Areia, na Ilha de Itaparica, onde foi levado por Fabrício Lemos para conhecer o trabalho do Instituto Ori — coletivo focado no desenvolvimento sustentável de produtos locais, que beneficia cerca de 200 famílias.
Foi um passeio de lancha, que durou aproximadamente 45 minutos, enriquecido por um almoço preparado por Fabrício e por uma pajelança onde todos dançaram em roda cantando Marinheiro Só, cantiga tradicional de pescadores.
Quando saiu do Brasil para estudar inglês na Inglaterra, Rafael decidiu mergulhar na cultura local, em vez de frequentar o gueto dos brasileiros.
“No começo morei num quarto debaixo da escada, assim tipo Harry Potter. Esse período da minha vida não foi nada fácil”, lembra. “Quando comecei na restauração, eu trabalhava muitas horas, demais. Hoje é até ilegal trabalhar tanto assim. Tomei muitas pancadas. Porque eu era estrangeiro, não falava a língua direito.”
As oportunidades surgiram aos poucos: um estágio aqui, outro ali: “Eu não fui realmente para uma escola de cozinha, entendeu? Aprendi na vida trabalhando e acho também bacana você ir para uma escola de cozinha, mas se você sabe só teoria…”
“A vida dá voltas”
Ele conta que, quando nasceu, os pais tinham um restaurante chamado Elis Piano Bar no centro de São Paulo.
“Mas minha mãe não era cozinheira, era uma atividade comercial, eles faziam aquilo por necessidade”, lembra. “E eu nunca me envolvi com o trabalho deles”.
No andar de cima do Da Terra, Rafael tem o Elis, um restaurante voltado para a cozinha brasileira, que rende homenagem à cantora e à primeira casa dos pais.
Hoje, depois de chegar aonde chegou, ele pensa que teria sido até interessante ter aproveitado essa experiência da família.
Mas quem diria que um dia Rafael seria um chef duas estrelas Michelin? Logo ele que foi trabalhar como ajudante de cozinha, para pagar o curso de inglês.
Começou lavando pratos e fazendo pequenas entradas: “Olha como a vida dá voltas. Eu nunca poderia imaginar”.