LONDRES — A imagem do banho da fotojornalista Lee Miller (1907-1977), que teve a “audácia” de se limpar da sujeira da Segunda Guerra Mundial na banheira do próprio Adolf Hitler, foi inicialmente julgada como um ímpeto de frivolidade.
Mas esse foi o modo que ela encontrou de ridicularizar o ditador nazista, deixando a imundice trazida em seu corpo (e possivelmente em sua alma) no banheiro do apartamento dele, em Munique. É nessa ideia que a cinebiografia Lee aposta, ao recriar as circunstâncias do registro, o que resultou em uma das fotografias mais icônicas sobre o fim da guerra.
Interpretada no filme, que acaba de estrear no Reino Unido, pela atriz Kate Winslet, Lee foi uma das raras mulheres que cobriu o conflito armado da linha de frente, documentando todo o horror do genocídio para a revista Vogue.
Graças ao seu interesse por artes (ela foi amiga de Pablo Picasso e Jean Cocteau) e por moda (ela foi modelo antes de se tornar fotógrafa), Lee tinha um olhar mais criativo. Ainda que o objetivo fosse o de registrar a realidade, suas imagens eram, muitas vezes, uma representação estilizada do caos e da destruição que a guerra trouxe à Europa. Daí ela ser apontada como uma das precursoras da fotografia surrealista.
Lee foi a primeira a chegar ao apartamento do Führer, na Prinzregentenplatz de Munique, usado por ele para encontros diplomáticos — como a reunião com o italiano com Benito Mussolini.
Lee e o seu parceiro profissional, o jornalista David E. Scherman, da revista Life, chegaram à casa do ditador na noite de 30 de abril de 1945, horas depois de Hitler e Eva Braun cometerem suicídio, em um bunker, em Berlim.
Exausta, tanto física quanto emocionalmente, a correspondente de guerra tinha passado aquele dia inteiro fotografando o campo de concentração de Dachau. Não foi por acaso que Lee limpou as botas no tapete branco de Hitler, deixando-o com manchas pretas, antes de se despir e entrar na banheira.
Aqueles sapatos tinham caminhado por atrocidades, eternizadas em imagens chocantes. Algumas delas mostravam os corpos esqueléticos dos prisioneiros empilhados, enquanto outras registravam o olhar dilacerado de alguns sobreviventes, inclusive crianças.
No filme dirigido por Ellen Kuras, ainda sem data para estrear no Brasil, Lee entra inicialmente no banheiro com a simples intenção de tomar banho, algo que não fazia há dias. Mas ela não resiste em registrar o momento, ao ver um retrato do ditador na pia. A fotógrafa quebra o vidro do pequeno quadro (para evitar o reflexo) e o posiciona, estrategicamente, na parede da banheira.
Assim, é como se o Führer a observasse, enquanto ela faz a pose de se limpar, com o olhar distante, de quem presenciou o absurdo da guerra. De certa forma, isso representaria a derrota de Hitler e a vitória da humanidade, por mais que a barbárie nunca mais pudesse ser apagada de sua mente.
Foi Lee quem montou toda a cena, o que incluiu dobrar e colocar em uma cadeira o seu uniforme de correspondente de guerra oficial do exército americano e posicionar uma pequena estátua de uma mulher nua na mesinha.
Ela só pediu que o parceiro apertasse o botão da máquina, dizendo: “Não deixe que os meus peitos apareçam. Senão a foto pode não ser publicada”.
“Acredite!”
Lee é uma adaptação da biografia que o filho da fotojornalista, Antony Penrose, publicou em 1985: The Lives of Lee Miller. No livro, ele conta que só descobriu o que a mãe tinha feito durante a guerra após a sua morte, já que ela nunca quis falar a respeito.
Como os arquivos dela estavam escondidos no sótão, Penrose encontrou milhares de fotografias e negativos, além de câmeras, documentos, jornais, cartas e diários, só depois do falecimento da mãe, aos 70 anos, vítima de câncer de pulmão.
Desde então, ele realiza exposições para manter o legado de Lee, que não teve o reconhecimento merecido em vida.
Uma das cenas mais dramáticas do filme traz a fotojornalista invadindo o escritório da Vogue inglesa e destruindo com tesoura negativos de suas fotos de guerra.
Lee fica furiosa quando a revista decide não publicar as imagens mais perturbadoras dos campos de concentração, com medo de ferir a sensibilidade dos leitores.
“Essas fotos não foram feitas para ficar em arquivo”, grita ela, enquanto a editora tenta impedi-la de estragar todo o material.
Felizmente, meses depois a Vogue americana foi mais corajosa e publicou as imagens mais horrendas, que eram evidências do genocídio, com o título: “Acredite!”.