Ninguém compra e desperdiça comida por prazer. Mas, do campo à mesa, quase 45% de tudo o que é produzido vão para o lixo em nossos lares — o equivalente a 569 milhões de toneladas descartadas, anualmente, no mundo.
Frente à urgência imposta pela crise climática e por uma população em crescimento exponencial, ganha força uma área do conhecimento relativamente nova — a psicologia do desperdício de alimentos. Quais os mecanismos psíquicos envolvidos no descarte de comida? E o que fazer para mudar esse comportamento?
A imensa maioria de nós não tem ideia de quanto desperdiça. E pior. Convidados a refletir sobre o assunto, mandamos para o lixo mais comida do que pensamos. Os desafios começam aí. Difícil enfrentar um problema, cuja dimensão (e, por vezes, até a existência) desconhecemos.
Mas, três pesquisadoras da Universidade Anglia Ruskin, na Inglaterra, decidiram avaliar o impacto do pensamento consciente na transformação dos hábitos alimentares, quando o foco é a redução do desperdício — os resultados do estudo estão publicados na revista científica Nature, sob o título Cerebrating and engagement, paths to reduce fresh produce waste within homes.
Sob a liderança de Cathrine Jansson-Boyd, professora de psicologia do consumo, elas acompanharam 154 famílias britânicas, ao longo de seis meses. Mediram as perdas de frutas, legumes e verduras — globalmente, a categoria de alimentos mais desperdiçada no âmbito doméstico. E partiram do princípio de que, na correria do dia a dia, falta tempo para o consumo consciente.
Metade dos participantes foi convidada a registrar quais produtos compraram e quando deveriam ser consumidos, segundo seus prazos de validade. Em cada uma das casas, as anotações foram colocadas na porta da geladeira, como um lembrete diário dos alimentos que deveriam ser consumidos primeiro.
Todos os dias, os voluntários recebiam mensagens de texto, lembrando-lhes de olhar os registros antes de preparar a refeição. Como grupo controle, a outra metade das famílias mediu o desperdício semanalmente, sem que lhes fosse enviado nenhum alerta. Ao final do acompanhamento, todos estavam jogando menos comida fora — com uma ligeira vantagem para o primeiro grupo.
A conclusão mais importante, no entanto, não é essa. E, sim, a descoberta de quanto tempo é preciso para consolidar a mudança de comportamento. Apenas seis semanas — mesmo depois, fora do período de monitoramento, o cuidado com os alimentos se manteve.
“É interessante que apenas um curto período de esforço consciente seja necessário para encorajar mudanças duradouras no comportamento”, escreve Cathrine, no artigo Measuring your food waste for six weeks can change your habits — new study, para a plataforma The Conversation.
Em seus cálculos, se apenas mil pessoas adotassem a mesma conduta, seria possível evitar a emissão anual de cerca de 9,5 toneladas de carbono — o equivalente a 1,14 milhão de cargas de smartphone.
“Pensar no desperdício de alimentos por seis semanas é um pequeno preço a pagar, se o resultado for uma diferença significativa e de longo prazo para o bem-estar do nosso planeta”, defende a pesquisadora.
Mais do que apenas combustível
Para o ser humano, a comida é muito mais do que um amontoado de nutrientes, combustível essencial ao bom funcionamento do organismo. Comida é história, cultura, memória, afeto e indulgência.
O modo como cada um de nós lida com a alimentação, se configura, portanto, uma experiência carregada de subjetividade — o que, no limite, também molda o desperdício.
“Desperdiçar comida é subproduto de outras atividades que normalmente têm boas intenções. Alimentar sua família com comida saudável, experimentar algo novo, dar uma boa festa, comer de forma mais saudável, cozinhar mais”, escreve americana Dana Gunders, presidente da ONG americana ReFED, no livro Waste-free kitchen handbook: A guide to eating Well and saving money by wasting less food. “O desperdício é um subproduto invisível de tudo isso.”
Para muita gente, alimentar a família e os amigos é uma forma de lhes demonstrar carinho e cuidado — quanto mais comida, melhor. Há também aqueles que encontram, na geladeira cheia e na despensa lotada, o conforto e a segurança para tempos tão incertos.
E, quem nunca, decidido, a ter hábitos mais regrados, abarrotou o carrinho do mercado com vegetais e produtos light, certos de que agora vai? Mas não foi — e, com a convicção perdida, lá se vão os alimentos (apodrecidos) para o lixo.
Nenhum especialista sugere que se desconsidere as emoções e sentimentos embutidos em cada garfada dada ou oferecida. É só não exagerar.
Frente à urgência climática e ameaça à segurança alimentar global, servir porções menores é uma declaração de amor ainda maior. Às pessoas queridas — ao planeta e à humanidade. Não custa muito apelar para o pensamento consciente, como mostraram as pesquisadoras da Universidade Anglia Ruskin.
“Com pequenas mudanças em nossos hábitos diários, podemos transformar a maneira como compramos, armazenamos, cozinhamos e consumimos alimentos, contribuindo para um mundo mais sustentável”, lê-se no guia sobre desperdício de alimentos — Lugar de comida é no prato, lançado em setembro pelo Pacto Contra a Fome.
A primeira delas: planejamento das refeições, com base na rotina e nos compromissos da semana. “Essa é uma maneira simples e fácil de evitar comprar mais do que o necessário”, informam os consultores da coalizão.
Sobras? Por que não?
Um dos capítulos mais interessantes da psicologia do desperdício é sobre como lidamos (ou não) com as sobras de uma refeição. Nós até podemos até guardar o que restou do almoço ou levar para casa o excedente do jantar no restaurante. Mas o fazemos por culpa — uma culpa que será esquecida no fundo da geleira até começar a apodrecer, cheirar mal e ir para o lixo.
Um estudo da ONG americana Natural Resources Defense Council mostra: as sobras são a segunda categoria de alimentos mais desperdiçadas nos lares; atrás apenas das frutas, verduras e legumes. No Brasil, essa é uma realidade em todas as classes sociais. Nós evitamos comida requentada.
As razões são as mais variadas. Da aversão a alimentos tidos como “velhos” à distinção social — como uma espécie de aviso de que aquela família tem condições financeiras para dispensar as sobras. Em muitas sociedades, como a brasileira, a mesa farta é cultural. De novo: pensamento consciente!
Mas como lembra a americana Laura Moreno, PhD em desperdício de alimentos pela Universidade da Califórnia, Berkeley, “as escolhas dos consumidores são influenciadas por decisões tomadas ao longo de toda a cadeia agroalimentar”.
Apesar dos avanços, ainda é difícil encontrar produtos alimentícios embalados em pequenas porções, para um ou duas pessoas, por exemplo.
As geladeiras e os pratos estão cada vez maiores. As informações sobre prazos de validade são incompreensíveis para muita gente. Os buffets dos restaurantes seguem com suas montanhas de comida. E por aí vai.
Vamos apelar para o pensamento consciente, clamam os especialistas, em uníssono. Todos nós, como indivíduos e sociedade; a indústria agroalimentar, e os formuladores de políticas públicas.