A cidade de São Paulo foi responsável por 18,2% dos procedimentos de aborto legal realizados no Brasil entre 2022 e abril deste ano, segundo dados do SIH (Sistema de Informações Hospitalares) do SUS (Sistema Único de Saúde). O município realizou 1.128 das 6.203 intervenções feitas no período.
Pioneira no serviço de aborto legal, a capital paulista atende pessoas da própria localidade e de outras cidades do estado e fora dele. Desde o encerramento do serviço no Hospital Vila Nova Cachoeirinha, no final do ano passado, porém, não há instituições no município que oferecem a interrupção da gestação após a 20ª semana.
“O Hospital da Cachoeirinha era o único no estado de São Paulo que oferecia serviços de interrupção de gestação para casos avançados. Este era um centro de referência não só para São Paulo, mas para todo o estado e até para regiões vizinhas”, diz a defensora Tatiana Bias Fortes, coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres.
Entre 2010 e 2019, São Paulo foi o principal destino de residentes de cidades pequenas, médias e grandes que necessitaram viajar para realizar o procedimento no país, segundo mapeamento realizado pela pesquisadora em saúde coletiva, Marina Jacobs.
Em 2023, foram registradas 746 internações para aborto legal no estado. Deste total, 548 procedimentos foram na capital, sendo que 189 das pacientes não residiam nela.
Segundo Jacobs, é difícil o município deixar de ser referência em aborto legal no país, mas provavelmente vai deixar de ser uma referência para abortos em gestações com mais de 20 semanas, avalia.
Quando uma menina ou mulher busca aborto legal após 22 semanas, é comum já ter enfrentado várias barreiras, como falta de informação ou dificuldade de acesso nos serviços acessados e, ainda assim, ao chegar a um estabelecimento de saúde referenciado, é possível que não realize o procedimento naquele tempo gestacional, conta.
“Com sorte, ela vai ser encaminhada para um serviço que faça [o procedimento], mas é muito comum que seja encaminhada para o pré-natal. É penalizar a vítima de novo por uma ineficiência do Estado em cuidar dela”, afirma.
Três serviços públicos, localizados em Salvador (BA), Uberlândia (MG) e no Recife (PE), realizam o procedimento em pacientes que passaram das 22 semanas de gestação.
“A prefeitura argumenta que outros quatro hospitais na cidade poderiam realizar esses procedimentos, mas não temos informações concretas de que eles estejam realmente capacitados para isso. Sabemos de mulheres que foram recusadas nesses hospitais devido à idade gestacional do feto”, afirma Fortes.
Procurada pela Folha, a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo afirmou que as instituições que oferecem o serviço são: Hospital Municipal Dr. Cármino Caricchio (Tatuapé), Hospital Municipal Dr. Fernando Mauro Pires da Rocha (Campo Limpo), Hospital Municipal Tide Setúbal (São Miguel Paulista) e Hospital Municipal e Maternidade Prof. Mário Degni (Jardim Sarah).
Além desses, há o antigo Hospital Pérola Byington, que agora atende pelo nome Hospital da Mulher, de gestão estadual.
“Quando contatamos o Hospital do Tatuapé, uma das unidades citadas, nos foi informado que não possuíam equipe disponível para realizar interrupções de gestação. Isso mostra uma discrepância entre as informações oficiais e a realidade”, diz a defensora.
A Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo não respondeu à Folha quando questionada sobre a realocação do serviço de Hospital Vila Nova Cachoeirinha e como é o atual encaminhamento de pacientes com gestação avançada, após repetidas tentativas por email e telefone.
Há uma ação popular, movida pela deputada federal Luciene Cavalcante (PSOL – SP) em curso desde janeiro desta ano, buscando a reabertura do serviço de aborto legal no Hospital Vila Nova Cachoeirinha.
Segundo ela, apesar de a prefeitura sustentar que não há prejuízo para as mulheres, que podem ser atendidas em outras localidades, se a vítima violência sexual estiver com a gestação avançada acima de 20 semanas, ela terá que tentar uma judicialização para conseguir realizar o procedimento. “Ainda enfrentamos muitos desafios para garantir que essas mulheres recebam o cuidado necessário”, diz.
Nesta quarta (19), o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes determinou que diretores de hospitais do município de São Paulo sejam intimados a comprovar se estão cumprindo uma decisão cautelar que vetou punições a médicos por abortos legais realizados acima de 22 semanas.
Fora da capital paulista, há mais seis instituições que realizam o procedimento: Maternidade Santa Isabel (Bauru), Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu (Botucatu), Caismi Centro de Saúde Integrada de Saúde da Mulher (Campinas), Hospital Estadual Dr. Odilo Antunes de Siqueira P. Prudente (Presidente Prudente), Hospital das Clínicas Faepa Ribeirão Preto (Ribeirão Preto) e Conjunto Hospitalar Sorocaba (Sorocaba).
Para Patrícia Vanzolini, presidente da OAB-SP (Ordem dos Advogados de São Paulo), não é correto deixar mulheres e meninas sem uma opção para realização de aborto legal em gestações que passaram da 22ª semana. “O acesso ao aborto legal seguro, feito pelo estado de forma gratuita e com segurança, faz parte do direito à saúde. O Estado, ao inviabilizar o exercício, está negando um direito importante”, diz.
Ainda segundo ela, sendo o aborto legal um direito previsto em lei, não deveria ser necessária nenhuma judicialização. “As hipóteses de aborto legal que estão previstas no nosso Código Penal, artigo 128, não necessitam da intervenção do judiciário.”
O processo para garantir o aborto legal na Justiça pode levar de 15 dias a dois meses, afirma Vanzolini. Durante esse tempo, a gestação avança, tornando o procedimento cada vez mais delicado para a saúde da gestante, completa.
Ela ressalta ainda que, mesmo em hospitais públicos que processam internamente o pedido de aborto legal, ele é negado devido à conclusão de juntas médicas de que não há provas suficientes de estupro, tornando o acesso a esse direito uma jornada árdua.
“Na verdade, a oferta e o acolhimento para aborto legal como um todo hoje são uma vergonha. As pessoas quase não têm acesso a esse cuidado. Em gestações com mais de 20 semanas, menos ainda. Então, seria horrível [o PL 1904] porque a gente deixaria de poder buscar garantir acesso nesses casos. No entanto, dizer que hoje o direito está garantido e que a gente vai perder, não é verdade”, afirma Jacobs.
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