Nem no país apontado pela sétima vez como o mais feliz do mundo os perrengues da maternidade dão trégua, e menos ainda os da maternidade solo. Nos quadrinhos do livro “Single Mothering” (algo como “solomaternando” ou “mãessolteirando”, em português), que é lançado em inglês pela editora britânica Nobrow, a finlandesa Anna Härmälä, 42, narra a gincana de uma mãe que se vê sozinha com um bebê.
“A Finlândia foi novamente declarada o país mais feliz do mundo. Sempre questionamos isso… Mas, se for mais como um sentimento geral de estar satisfeito e ter o que é necessário, talvez seja verdade. O estado garante que haja um padrão de vida mínimo para famílias monoparentais. A saúde e a creche também são gratuitas ou de custo muito baixo. Há uma rede de segurança econômica”, afirma ela por email. “Tenho noção dos meus privilégios nórdicos.”
Mesmo com essas condições asseguradas num país em que 22% das mães criam seus filhos sozinhas (o índice no Brasil atinge 55%, segundo o Datafolha), o cansaço e a cobrança, de dentro e de fora, continuam a dar as cartas.
Não é à toa que a protagonista do livro e alter-ego da autora, Mia, sonha com o momento em que ela mesma pudesse deitar em posição fetal dentro das famosas caixas-berço fornecidas aos recém-nascidos pelo governo finlandês (o Brasil já teve versões dessas caixas, como uma lançada por Bela Gil).
“Acho que talvez eu seja mais crítica de mim mesma como mãe do que seria se tivesse aprendido a ser mãe com a segurança e a validação de um parceiro. Além disso, quando são duas pessoas, as forças provavelmente serão diferentes e você não precisa ser boa em tudo.”
Para ilustrar esse processo duplo de descobrir a maternidade e sua versão “solteira, sim, sozinha, também”, Härmälä desenha o momento em que Mia vira o meteoro que cai na vida pós-puerpério e aterrissa toda chamuscada no chão de um supermercado.
“O livro é em parte baseado em minhas próprias experiências, em parte em coisas que estavam acontecendo ao meu redor ou no meu círculo de amigos, e eu adicionei um pouco de ficção aqui e ali pelo bem da história.”
Os obstáculos e solavancos ganham elementos exagerados e cômicos na narrativa. Seres parecidos com sibilas dão logo a real e apresentam outra caixa a essa nova mãe.
“Querida mãe solo, seu futuro está traçado. Aqui está uma caixa. Nós queremos colocar você nela. De agora em diante, você sempre será mais julgada que as outras mães. Sempre vai se apertar para fechar as contas. Você vai invejar famílias nucleares e casais felizes. Pensando bem, a caixa mais parece um caixão”, dizem elas, trazendo com o féretro as carpideiras que estão lá para julgar. E como escapar desse funeral maluco?
O trabalho de Härmälä mostra que não há engano que um pouco de perspectiva (ou alguma terapia) não corrija. A idealização das famílias nucleares dá lugar a histórias mais desagradáveis e com lastro na realidade: um “ele provavelmente cozinha enquanto ela amamenta” vira “ele está é mandando mensagem para a amante”.
O livro, conta ela, começou a brotar num passeio com o carrinho de bebê depois de uma consulta “de médico ou terapeuta, algo assim, e eu estava comentando com um amigo toda essa loucura”.
Nos primeiros anos, porém, ela não conseguia fazer nada mais do que algumas fotos e pequenas anotações. “Tudo meio que ficou armazenado na minha cabeça esperando ser processado. E não havia como desenhar quadrinhos quando minha filha era pequena. Eu sou professora de arte em uma escola em período integral, então estava constantemente perto do colapso/em modo de sobrevivência.”
Agora, diz, as coisas se acalmaram. “Senti que estava pronta quando minha filha ficou um pouco maior e tempo suficiente havia passado para eu ganhar perspectiva. Precisava ainda ser capaz de acessar as coisas dolorosas, mas não ficar paralisada por elas. Em março de 2021, comecei a testar se as pessoas gostariam dos meus quadrinhos postando-os no Instagram anonimamente. Daí explodiu e acabei no [jornal britânico The] Guardian.”
Para estruturar os pedaços tragicômicos da vida de mãe solo, que incluem incursões nos aplicativos de namoro, ela encontrou inspiração na série “Fleabag”, de Phoebe Waller-Bridge. “Vi uma entrevista em que ela explicava que escrevia as cenas/piadas primeiro e construía a narrativa depois. Foi como eu e minha editora Niamh Jones trabalhamos. Eu tinha fragmentos, memórias e piadas que precisávamos fazer funcionar como narrativa linear.”
E ainda havia um bônus. “Com os quadrinhos, conheci muitas mães solo amáveis e ouvi tantas histórias que são muito mais difíceis do que a minha. Se deixarmos as pessoas se aproximarem ao compartilharmos nossa história, elas também vão poder compartilhar a delas e, de repente, estamos menos sozinhas. A rede de apoio de outras mães solo foi inestimável para mim durante os anos mais difíceis.”
O livro aposta no lado mais ácido do humor, mas termina numa nota otimista. “Se não estamos felizes agora, devemos lembrar que podemos ser felizes no futuro”, diz Härmälä.
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