Aos 52 anos, Raimundo Carlos da Silva, cacique da etnia Guajajara, não entendia a fadiga que sentia nas atividades cotidianas e nem por que tinha perdido cerca de um terço do seu peso corporal em alguns meses, chegando a 53 kg.
Ele começou a sentir problemas de incontinência urinária à noite, sem nenhum motivo aparente. Muito magro, surgiram sinais de desnutrição, mesmo sentindo fome constante.
Até então, ele não tinha tido uma consulta médica que conseguisse ajudá-lo em sua condição, já que a unidade básica de saúde mais próxima de sua aldeia, na Terra Indígena Bacurizinho, no município de Grajaú (a 562 km de São Luís do Maranhão), fica a 150 km da cidade.
Foi então que, com um celular e conexão à internet, conseguiu realizar a sua primeira teleinterconsulta, também chamada de consulta triangulada, em que um médico de atenção primária realiza o atendimento digital junto a um médico especialista em outro polo, e foi diagnosticado com diabetes.
“Antes de ter essa consulta, nunca pensei que fosse diabético”, conta Silva, mostrando como o acesso à saúde é dificultado em comunidades isoladas. Após o diagnóstico, recuperou 12 kg —está pesando 65 kg— e iniciou o tratamento com medicação que também obtém pelo SUS.
O caso de Silva é um de muitos atendidos graças ao programa TeleNordeste, do Proadi-SUS (Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde). Lançado em 2022, o programa já atingiu a marca de 53 mil teleconsultas realizadas nos nove estados em que atua —AL, BA, CE, MA, PB, PE, PI, RN e SE—, com cinco hospitais filantrópicos participantes (BP – A Beneficência Portuguesa de São Paulo, Oswaldo Cruz, HCor, Moinhos de Vento e Sírio-Libanês).
Os atendimentos à saúde indígena, por sua vez, tiveram início em 2023, com 351 atendimentos realizados em sete estados (Piauí e Sergipe não tiveram consultas). O Maranhão é, inclusive, o estado com mais teleconsultas (99).
Para Camila Rocon, coordenadora médica de saúde digital do Hcor, o objetivo do TeleNordeste é fortalecer ainda mais a atenção primária, pois a consulta triangulada ajuda também no treinamento e na autonomia do médico de família ou profissional de saúde na outra ponta. “O médico, discutindo o caso com o especialista, vai ser treinado para identificar casos de baixa e média complexidade e evitar que esse paciente seja encaminhado para a atenção especializada”, diz.
A possibilidade do atendimento triangulado ajuda, também, a reduzir possíveis sequelas de um atraso no atendimento, explica a médica. “O especialista vai discutir as possíveis complicações e orientar aquele médico de atenção primária a prescrever um tratamento, porque um diabético descompensado pode ter sequelas renais, circulatórias e até neurológicas que, em um primeiro momento, dificultam a sobrevida desse paciente e, no segundo momento, aumentam o custo da saúde pública, sobrecarregando o sistema.”
Nesse caso, a celeridade do processo também é um benefício —uma vez que uma consulta com um neurologista ou cardiologista no SUS, duas das principais especialidades com maior necessidade, pode chegar a mais de um ano de espera.
“A gente sabe que essa demora causa mais adoecimento, mais sofrimento, uma vez que a doença vai se agravando e, quando finalmente chega, tem mais dificuldade na condução do caso. Então, uma consulta de cardiologia em João Pessoa, que pode demorar até dois meses, pode ser marcada para a mesma semana com o teleatendimento”, explica Luís Cesar Morais de Lucena, médico de saúde indígena do polo base de saúde indígena Cacique Daniel Santana, no município de Baía da Traição (80 km de João Pessoa), na Paraíba.
Segundo ele, a maior demanda em sua comunidade tem sido para consultas com endocrinologistas e cardiologistas, relacionados ao aumento da incidência de doenças crônicas na população indígena e ao envelhecimento. “A gente tem uma necessidade por especialidades como cardiologista e endocrinologista porque a população indígena está em um processo de transição epidemiológica, onde as doenças cardiovasculares e associadas ao envelhecimento vão ficar mais presentes”, diz.
Estela Domingo, 72, moradora da aldeia São Francisco, de Baía de Tração, sentia dores pelo corpo e faltava fôlego ao fazer as tarefas da casa, como varrer e cuidar do quintal. Por ter dificuldades de deslocamento, a equipe enviou um carro para buscá-la em sua residência e levá-la à UBS (Unidade Básica de Saúde), onde realizou a teleinterconsulta.
Diagnosticada com hipertensão arterial e obesidade, ela segue em acompanhamento médico para os sintomas e controle de medicação.
Um dos fatores que mais influenciam no atendimento à saúde indígena é, por vezes, a resistência da população em realizar uma teleconsulta, diz Rocon. Por essa razão, foi realizado um trabalho de pactuação com os departamentos de saúde indígena estaduais, ligados ao Ministério da Saúde, e as secretarias municipais de saúde para detectar as áreas com mais necessidade para atuação.
Em nota, a pasta da Saúde disse que a atual gestão criou, no início de 2023, a Secretaria de Informação e Saúde Digital que, em parceria com a Sesai (Secretaria Especial de Atenção à Saúde Indígena), atua para fortalecer a saúde indígena por meio da telessaúde e saúde digital. “Dessa forma, ações estruturantes para expandir e qualificar a saúde indígena vem sendo planejadas e implementadas pelo Ministério da Saúde”, disse.
O ministério afirma que as “ações fazem parte das iniciativas do Programa SUS Digital, instituído pela Portaria GM/MS nº 3.232/2024, e criado para ampliar o acesso da população, incluindo a saúde indígena, a partir da intersecção entre tecnologia, informação e serviços de saúde como parte do processo de transformação digital e inovação” e que as “estratégias remotas para o avanço da saúde especializada em territórios indígenas no âmbito do Proadi-SUS foram aprovadas em março de 2024 com alinhamento com a Sesai e comunidades indígenas”.
Afirma, ainda, que as teleinterconsultas ocorrem principalmente nas áreas de neurologia pediátrica, endocrinologia, reumatologia, neurologia, pneumologia, cardiologia e psiquiatria, e que os pacientes aldeados podem realizar todo o acompanhamento dentro dessa linha de cuidado.
No caso da aldeia de São Francisco, Lucena explica que até houve uma certa estranheza no início por parte da população, mas que após a primeira consulta todos se mostraram curiosos e interessados em realizar o atendimento digital. Outro ponto essencial é a união dos cuidados tradicionais indígenas com a alopatia. “A gente sempre coloca lado a lado, porque quando associa, você tem a garantia da adesão, proporciona os efeitos terapêuticos dos conhecimentos populares também, que têm as suas propriedades farmacológicas.”
Este projeto foi financiado pelo ICFJ (International Center for Journalists) por meio do edital de Inovação em Saúde