A artista que pinta e esculpe até a “cabeça ficar oca”

A artista que pinta e esculpe até a “cabeça ficar oca”


“Beira-mar, beira-mar, novo. Foi só o que cantei, ô beira-mar, adeus dona. Adeus riacho de areia…” De vestido florido, cabelos grisalhos em duas tranças, Maria Lira Marques canta, às margens de um rio que corta o Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais.

É das canções populares, da terra e da natureza da região onde nasceu que ela, aos 78 anos, tira inspiração e matéria-prima para produzir suas pinturas e esculturas.

A cena da cantoria à beira do rio faz parte de um minidocumentário em exibição na mostra Roda dos Bichos, em cartaz no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo. É a primeira individual de Lira – uma artista em ascensão no mercado.

Além da exposição na capital paulista, na próxima semana, parte de sua obra será  apresentada na Independent Art Fair, em Nova York, levada pela galeria Gomide&Co., representante de Lira em São Paulo.

Em outubro, seus trabalhos estarão na 38ª edição do Panorama da Arte Brasileira do Museu de Arte Moderna de São Paulo, uma das exposições mais importantes do calendário artístico de 2024. E, para o fim do ano, está previsto o lançamento de um livro sobre suas pinturas e esculturas, pela editora Act.

Nascida em Araçuaí, no interior mineiro, Lira despertou para a arte ainda criança, ao ver a mãe Odília misturar barro e cinzas para moldar as figuras de um presépio. Sem formação artística formal, ela estudou apenas até a 7ª série do Ensino Fundamental. Foi longe graças a uma curiosidade aguçada e inquietante.

Quando menina, Lira visitava o mercado da cidade e entrevistava os vendedores de cerâmica para saber mais sobre suas técnicas. “Por que suas peças são vermelhas?”, “Como você dá essa textura lisinha?”, assim, aprendeu a modelar e queimar o barro.

Com olhar atento a tudo à sua volta, criou um repertório próprio de feições humanas que usava em seus bustos. Interessava-lhe sobretudo os rostos negros e indígenas, de quem Lira tem ascendência. “Essas pessoas têm expressões fortes”, diz ela, em conversa com o NeoFeed. “Eu gosto muito.”

Quando perceberam seu talento para figuras humanas, pediram-lhe para fazer esculturas de gente famosa, como os cantores Roberto Carlos e Ronnie Von. Ela recusou — jamais copiou o rosto de alguém. “A minha arte vem do que planta na minha imaginação. Nunca fiz nada que me obrigaram. Na minha arte, eu faço apenas o que sinto vontade”, afirma.

E quando o desejo vem, Lira produz “até a cabeça ficar oca”. “Depois, sinto aquela leveza. Fico uns 15 ou 20 dias sem produzir, até que surja a inspiração de novo”, conta.

O grande encontro

Na década de 1970, com muitas famílias vivendo abaixo da linha da pobreza, o Vale do Jequitinhonha era conhecido como  “vale da miséria”. É dessa época suas primeiras peças de barro. Sensível à dor das pessoas à sua volta, Lira esculpe corpos retorcidos com as expressões do desespero de quem tem fome.

Nessa ocasião, ela conheceu o religioso holandês Francisco Van der Poel, o frei Chico (1941-2023). No Brasil desde 1967, o franciscano se tornou pesquisador da arte e da cultura do país, dedicando atenção especial ao Vale do Jequitinhonha. Ele encontra em Lira a parceira ideal para tocar seus estudos.

“Ela se torna uma investigadora dos saberes do seu território – os cantos, as rezas, as simpatias, as relações com a ancestralidade, as festividades”, diz Paulo Miyada, curador da exposição, em entrevista ao NeoFeed. “Entrevistando centenas de pessoas, Lira se torna muito sensível aos sintomas da desigualdade social, da exploração extrativista e do racismo, que marcaram muito a realidade do Vale do Jequitinhonha – o que ela reflete e representa figurativamente nas primeiras esculturas.”

Sem título, 2021, pigmentos naturais sobre papel (Crédito: @DingMusa)

A parceria com o religioso holandês Francisco Van der Poel, o frei Chico, foi fundamental tanto para Lira quanto para ele (Crédito: Divulgação)

Sem título, 2019-2020, pigmentos naturais sobre papel (Crédito: @DingMusa)

Lira também se dedica a esculturas de barro (Crédito: Divulgação)

Algumas peças, como essa pintura sobre pedra de 2021, lembram as pinturas rupestres (Crédito: @EdouardFraipont)

Sem título, 2023, pigmentos naturais sobre papel (Crédito: @JuliaForoni)

Lira já era relativamente conhecida como ceramista, tendo participado de algumas exposições em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro, quando, em meados dos anos 1990, foi impedida de amassar o barro, por causa de uma tendinite no ombro.

“Era tanta dor que tinha vontade de correr para o mato”, conta. O sofrimento vinha também da impossibilidade de colocar seus impulsos criativos para fora.

Frei Chico entendeu a angústia da amiga: “Lira, por que você não desenha?”. Entregou à artista papel e os pigmentos de terra, que ela usava para pintar o barro.

“Prefiro agora seus desenhos”

Intuitivamente a artista fez uma mistura com água, cola e terra e começou a pintar. Lira não gostou, mas o religioso guardou as pinturas.

Dali algumas semanas, quando a curadora e especialista em arte popular Lélia Coelho Frota visitou o ateliê de Lira para conhecer a artista e levar o trabalho dela para o Rio de Janeiro, frei Chico mostrou os desenhos recentes da artista. “Lira, se eu já gostava de sua cerâmica, eu prefiro agora os seus desenhos”, atestou Lélia.

É impressionante a variedade de cores que Lira “colhe” num raio de poucos quilômetros de sua casa. Amarelos, rosas, marrons, laranjas… depois de moer os torrões de terra, a artista mistura com cola e produz as tintas.

Alguns talvez identifiquem um veado, um lagarto ou uma cobra nas obras de Lira. Pelos traços minimalistas, há ainda quem relacione as suas pinturas à arte rupestres.

Mas a artista garante: ela não se inspira na realidade, tudo vem de sua imaginação. E assim, pela força da criatividade de Lira, as terras do Vale do Jequitinhonha se espalham pelo mundo.

Como uma das canções que ela eternizou em sua pesquisa: “Vou remando minha canoa. Lá, pro poço do pesqueiro. Ô beira-mar, adeus dona. Adeus riacho de areia…”





Fonte: NeoFeed

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