Sem alarde, o setor de aviação está começando a fazer a sua parte para acelerar a transição energética buscando reduzir as emissões de carbono até 2050.
Os aviões comerciais que cruzam o planeta são movidos a querosene, um combustível fóssil poluente que emite cerca de 1 bilhão de toneladas de CO2 na atmosfera por ano, o equivalente a 2% e 3% das emissões mundiais totais.
O desenvolvimento do chamado combustível sustentável de aviação (SAF, na sigla em inglês), produzido a partir de matérias-primas renováveis – como bagaço de cana-de açúcar, óleo de cozinha usado, gordura animal e até lodo de esgoto – está redirecionando investimentos e abrindo novos modelos de negócios, muitos deles no Brasil.
A corrida já começou, apesar de a redução de emissão só passar a ser obrigatória a partir de 2027, quando tem início o aumento gradual da mistura obrigatória de SAF ao querosene em todos os voos internacionais, até a possível substituição completa do combustível fóssil na aviação, em 2050.
A expectativa é de que o mercado de SAF movimente globalmente US$ 400 bilhões por ano, sendo US$ 30 bilhões no Brasil, quando estiver consolidado.
Além da grande demanda em médio prazo – apenas 0,2% do combustível de aviação consumido globalmente por ano tem características sustentáveis -, outros fatores estão impulsionando os investimentos em SAF mundo afora, com potencial de colocar o Brasil como grande produtor.
Uma exigência da Organização da Aviação Civil Internacional (OACI, na sigla em inglês), agência da ONU responsável pelo desenvolvimento do setor, favorece o Brasil, atualmente o segundo maior produtor, atrás dos EUA.
A norma proíbe a produção dos biocombustíveis feitos a partir de insumos ligados ao desmatamento. Como o Brasil tem aproximadamente 40 milhões de hectares de terras degradadas, leva uma nítida vantagem em relação a muitos países, além da expertise nacional em toda a cadeia de produção de biocombustíveis, como do etanol e do biodiesel.
Macaúba na mira
O potencial do País pode ser avaliado pelas pesquisas, projetos embrionários ou investimentos em curso com palmeira de dendê, macaúba, cana, eucalipto, soja, milho e agave (planta usada na produção de tequila), entre outras matérias-primas, buscando obter maiores reduções de carbono no SAF.
“O Brasil vive uma revolução nessa área, com projetos visando ao desenvolvimento de uma cadeia de valor baseada em plantas de altíssima produtividade para produzir SAF em regiões desafiadoras, como em terras degradas ou no sertão”, afirma Gonçalo Pereira, coordenador do Laboratório de Genômica e Bioenergia da Unicamp.
O pesquisador cita um projeto de domesticação da macaúba, planta nativa brasileira, como exemplo. Ele é tocado pela Acelen Renováveis, empresa de energia do fundo Mubadala, dos Emirados Árabes Unidos, em parceria com a Unicamp.
O fundo pretende investir R$ 12 bilhões até 2033 na produção de bioquerosene de aviação e também de diesel verde (HVO), biocombustível para substituir o diesel em caminhões, na refinaria de Mataripe (BA).
No mês passado, a Acelen deu início ao plantio experimental de mais de 1,3 mil mudas de macaúba em Piracicaba (SP). O objetivo é analisar o óleo extraído da macaúba como matéria-prima para produção anual de mais de 1 bilhão de litros de SAF e HVO.
Se a macaúba se mostrar viável, a empresa pretende plantar 200 mil hectares nos estados da Bahia e de Minas Gerais, utilizando somente terras degradadas.
“O potencial é muito grande: enquanto o óleo de soja usado para produzir SAF tem uma produtividade de 500 litros por hectare plantado, com a macaúba essa relação é de 5.000 litros por hectare”, diz Pereira.
A expectativa é começar a extrair o óleo da plantação em até quatro anos. Até lá, a Acelen pretende usar a soja para produzir SAF.
Até a Sanepar, empresa de saneamento do Paraná, analisa produzir combustível de aviação partir de lodo de esgoto, em parceria com as empresas britânicas Firefly Green Fuels e Green Fuels Research.
De acordo com Erasmo Carlos Battistella, CEO do ECB Group – holding que controla a Be8, que atua com a venda de biocombustíveis e com projeto de SAF no portfólio -, a grande vantagem na transição verde do setor de aviação é que não há uma matéria-prima mais efetiva para o SAF.
Ela depende da área onde está disponível para ser mais competitiva. “Esse é o charme do biocombustível: não existe uma solução única para o mundo todo, ela é customizada”, afirma Battistella. “O óleo de palma, por exemplo, é alternativa para recuperar áreas degradadas numa faixa do globo que inclui Pará, Colômbia e Indonésia, em outras regiões pode ser a soja ou o milho.”
Barreiras técnico-comerciais
O Brasil, porém, precisa ficar atento a aspectos regulatórios internacionais que são desfavoráveis ao País. A despeito das normas da OACI, cada país precisa regulamentar sua produção de SAF. Isso tem criado barreiras técnico-comerciais.
Battistella diz que há análise equivocada do uso da terra em países como Arábia Saudita, Canadá e na União Europeia, que rejeitam a utilização do óleo de soja para produção de SAF, mesmo que a soja venha de terras degradadas. O próprio etanol tem restrições.
“Precisamos ser agnósticos em relação à matéria-prima: não podemos usar o produto em função dessa matéria-prima, e sim pelo que ela traz em redução de efeito-estufa”, afirma o empresário.
A Be8, de Battistella, lançou este ano o projeto Omega Green, com aporte de US$ 1 bilhão. A empresa adquiriu um terreno em Villeta, a 45 quilômetros de Assunção, capital do Paraguai, para construir uma unidade voltada para a produção de SAF e também de HVO.
O complexo vai gerar SAF a partir da conversão de óleos naturais não comestíveis, gorduras animais e outras matérias-primas residuais.
Battistella adverte para a demora do País em aprovar a regulamentação para o mercado de SAF. Ele defende a aprovação do Projeto de Lei do Combustível do Futuro (PL 528/2020), que está no Senado: “Defendemos a não mudança da versão aprovada na Câmara e celeridade na aprovação.”
O PL prevê a criação do ProBioQAV (Programa Nacional de Combustível Sustentável de Aviação). De acordo com o projeto, os operadores aéreos no Brasil terão que reduzir as emissões de dióxido de carbono em 1% ao ano de 2027 a 2037. Ao fim desse período, a redução deve ser de 10%.
A demora da aprovação de regulamentação da SAF no País está levando empresas brasileiras a mirar o mercado externo.
A Raízen, maior processadora global de cana-de-açúcar, já fechou contratos para exportar seu etanol de segunda geração para a Europa, onde ele será submetido ao processo para virar SAF.
A Raízen pretende construir 20 usinas de etanol de segunda geração. Cada uma vai exigir R$ 1,2 bilhão de investimentos. Dessas, nove já tiveram a produção dos dez primeiros anos vendidas e duas estão com as obras concluídas.
Além de perder ganhos com a produção do ciclo completo da cadeia, do campo ao tanque, a demora da regulamentação põe o Brasil sob risco de precisar importar o combustível de SAF a partir de 2027.