Enquanto a indústria de beleza anuncia semanalmente centenas de lançamentos, o número de produtos pensados para pessoas com deficiência é irrisório. Eles se fazem necessários porque aspectos como embalagem, forma de uso e identificação não são criados com a acessibilidade necessária.
No caso de pessoas com deficiência visual, por exemplo, identificar a cor de batons ou sombras em uma paleta e diferenciar produtos com embalagens semelhantes são desafios corriqueiros. Já pessoas com deficiência motora cujo movimento das mãos seja reduzido tendem a não conseguir segurar um pincel ou um aplicador de maquiagem com a precisão necessária.
Pensando nisso, a Folha convidou três mulheres com deficiência visual para testarem os pincéis com acessibilidade lançados pelo Grupo O Boticário neste ano —o fabricante foi o único nacional encontrado pela reportagem. O teste faz parte da seção Folha Prova, que oferece ao leitor um guia de compra e uso. Hidratantes faciais, protetores solares, produtos antiatrito e batons já foram testados.
Vendidos pela Quem Disse, Berenice? —marca pertencente ao grupo— por valores que vão de R$ 31,90 a R$ 69,90 (preços do site), os pincéis foram projetados com cabos de base quadrada, orientação tátil e cerdas coloridas. De acordo com a marca, os recursos foram pensados para evitar o rolamento, facilitar a identificação tátil dos pincéis por pessoas cegas e auxiliar pessoas com baixa visão a diferenciarem cada produto.
Cabo com base quadrada
Diferentemente da maioria dos apetrechos de beleza, cilíndricos, os pincéis acessíveis foram projetados com base quadrada para evitar que rolem ou caiam no chão. O recurso também pode facilitar a pega e ajudar na precisão do movimento.
“O pincel pode ajudar pessoas que tenham dificuldade de segurar ou mobilidade reduzida”, afirma Geisa Farini, 35, analista de qualidade de software e produtora de conteúdo para a internet. “Outro ponto positivo é que não vai cair da mesa ou da penteadeira”, explica.
Geisa foi diagnosticada com glaucoma congênito e teve baixa visão até os 13 anos, quando ficou totalmente cega. Aos 15, começou a usar maquiagem, influenciada pelas irmãs.
“O pincel é um pouco mais tranquilo de identificar, porque decoro o tamanho e o formato das cerdas e consigo associar qual serve para cada produto. Quando se trata de cores de sombra e batom, no caso de uma paleta, por exemplo, eu tento decorar, mas se forem muitas cores eu tenho bastante dificuldade e acabo pedindo ajuda para amigos via ligação de vídeo ou pessoalmente”, conta.
Orientação tátil
As sinalizações táteis são bastante utilizadas por pessoas cegas, que costumam adaptar os mais variados itens de forma artesanal. Jéssica Santos Melo, 32, dona de casa e produtora de conteúdo, diz sentir falta de maquiagens que já venham com a marcação.
“Principalmente as sombras, porque assim não precisaríamos decorar cor por cor da paleta. O batom, eu normalmente risco com faca para deixar em relevo.”
Ela também possui diagnóstico para glaucoma congênito desde os dois meses e hoje tem deficiência visual com baixa visão severa —consegue ter noção de luminosidade e cores fortes com contrastes. Com auxílio da tia, começou a se maquiar com mais frequência há seis meses, para gravar vídeos na internet.
No caso dos pincéis do grupo O Boticário, cada item tem uma sinalização diferente na base, com bolinhas e outras formas geométricas em relevo de acordo com o produto: sombra, blush e iluminador.
Para as convidadas, o recurso seria dispensável no caso dos apetrechos de aplicação, uma vez que as próprias cerdas já funcionam como orientação tátil.
“A gente vai ter que decorar [do mesmo jeito que decora em uma paleta] o que é o quê”, disse Geisa. Isso porque não há nenhum recurso que explique qual sinalização corresponde a cada pincel. “As marcações não atendem uma pessoa cega porque, se eu não conhecesse um pincel de pó, não saberia diferenciar. Eu só sei porque já conheço o formato das cerdas”, acrescenta.
“Talvez quando a pessoa está iniciando na maquiagem, pode ser interessante. De repente, ela pode aprender que o aplicador de sombra tem essa marcação, e vai ser uma ajuda” afirma Jucilene Braga, 43, psicóloga.
Ela perdeu a visão aos 5 anos, após ser atingida por um tiro de espingarda, e hoje enxerga algumas variações de claridade.
Por outro lado, elas defendem o uso do recurso em produtos com embalagens parecidas ou para identificar cores. “Os batons de uma mesma linha às vezes são iguais, e não conseguimos diferenciar a cor. Nesse caso, a sinalização ajudaria. Também seria útil uma marcação para diferenciar batom líquido, corretivo e rímel”, avalia Geisa.
Jéssica conta já ter passado corretivo na boca após ter confundido a embalagem. Hoje ela cheira o produto antes do uso —os labiais costumam ter um aroma adocicado, como o de bala, enquanto o corretivo pode ter perfume e o rímel tem um cheiro mais químico.
De acordo com o Grupo O Boticário, a escolha por acessibilizar os pincéis surgiu de estudos realizados com pessoas com deficiência, “interpretando suas necessidades em relação à aplicação de maquiagem”.
“Para definir as marcações táteis, contamos com a participação de pessoas com deficiência visual que avaliaram diversas opções de formatos e desenhos e validaram aqueles que faziam mais sentido para suas necessidades de identificação”, diz, em nota, a companhia.
“A figura em si não possui associação direta com representatividade da função do pincel, mas com a identificação possível para aquele diâmetro, através da validação dos consumidores”, completa.
Cerdas coloridas
As participantes perguntaram para a Folha se havia alguma diferenciação de cor entre os pincéis. Elas foram informadas de que cada pincel tinha as cerdas de uma cor, enquanto os cabos são padronizados em cinza.
Diferenciar os objetos por meio de cores é um recurso de acessibilidade efetivo para pessoas com baixa visão, mas a escolha das cerdas se tornou mais acessória do que efetiva, de acordo com as convidadas.
“Se você passa o pincel em um blush ou uma sombra, as cerdas vão ficar com a cor da maquiagem, então não faz sentido que as cerdas sejam de cores diferentes, mas sim o cabo”, diz Jucilene.
Questionada sobre a escolha por cerdas coloridas em vez dos cabos, o Grupo Boticário informou que pessoas com baixa visão necessitam de contraste. “E por esse motivo fizemos as pontas com cerdas coloridas contrastando com seu corpo. Pincéis com cerdas coloridas já são uma característica da marca, e incluindo esse contraste acrescentamos mais um atributo de acessibilidade para o consumidor.”
Embalagem
A embalagem foi muito citada pelas convidadas. De acordo com elas, não será possível comprar os produtos de forma autônoma, uma vez que precisarão perguntar a um acompanhante ou vendedor qual pincel estão comprando. Isso porque, mesmo que as cerdas e a base indiquem qual o tipo de pincel, a embalagem não possui uma forma de leitura para pessoas com deficiência visual.
Outro ponto é a falta de legenda ou identificação que associe a figura tátil da base a cada tipo de pincel. “A embalagem não tem nenhuma identificação tátil e, se não querem colocar um braille no pacotinho, poderia ter uma bolinha com QR Code para que a gente pudesse fotografar e saber exatamente qual é o pincel”, afirma Geisa.
De acordo com a empresa, “atribuir acessibilidade às embalagens ainda é um desafio não somente do Grupo Boticário, mas do mercado de beleza”. A companhia afirmou ter como meta colaborar para que todos os elementos que compõem seus produtos sejam mais diversos e inclusivos.
Como parte da iniciativa Todas, a Folha presenteia mulheres com três meses de assinatura digital grátis