A exemplo do que acontece com seus carros elétricos e bens de consumo, a China investe em sua medicina tradicional. A mais importante reunião de política pública a cada cinco anos, a Terceira Plenária, na semana passada, anunciou como diretriz “melhorar o mecanismo de herança, inovação e desenvolvimento da medicina tradicional chinesa” ou MTC.
No cotidiano, ela é chamada apenas de medicina chinesa, em contraponto à ocidental. A atenção não começou com o líder Xi Jinping, que assumiu há pouco mais de uma década. Nas instruções para funcionários graduados que saiu em livro no final do mandato de Hu Jintao, seu antecessor, está lá: “Nós damos prioridade igual para as medicinas chinesa e ocidental. Nós apoiamos o desenvolvimento da medicina tradicional chinesa”.
Mas não falta resistência, sobretudo entre profissionais urbanos. No centro financeiro de Pequim, questionado se recorreria à MTC, Eric Li, 40, executivo com formação em relações internacionais, respondeu que não acredita. Listou diversas razões, como a falta de validação científica em maior escala e até o fato de ter se tornado uma questão “divisiva” no próprio país.
Diz que o fato de ganhar apoio e ter avançado sobre o mercado financeiro traz outro problema, a “comercialização do debate”. Ações de quatro grupos empresariais de MTC, um deles em atividade desde 1541, movimentam regularmente as bolsas de valores da China, seguidas de perto pelo noticiário econômico.
Li reconhece que há “profissionais qualificados”, mas diz que falta padronização e avaliação no sistema, tornando “difícil confiar”, e que a MTC não pode ser vista como “uma solução única, para todos”.
Talvez por ser divisiva, ela também é hoje um tópico de fácil engajamento em mídia social. O vice-presidente Geraldo Alckmin, que é médico com especialização em acupuntura, um dos ramos da MTC, veio a Pequim no último mês e acrescentou à agenda uma visita a uma clínica e farmácia de 1669, a poucas quadras da Praça da Paz Celestial.
Espetou um colega chinês no pulso, explicou o efeito, “age no cérebro”, e viralizou da CCTV para plataformas como WeChat. A clínica singela, chamada Tong Ren Tang, é na verdade uma das quatro gigantes do setor. O correspondente da Folha solicitou depois uma consulta, citando dificuldade para dormir, mas foi recusado por uma médica e convidado a sair por um segurança.
A segunda tentativa foi bem-sucedida, num hospital moderno de quatro andares e aparelhos mais identificados ao uso na medicina ocidental, como ultrassonografia. Após uma consulta extensa, foi receitado um tratamento de acupuntura, usando agulhas e ventosas, ao custo de 214 yuans por sessão (R$ 167).
Foi procurada também uma clínica menor, voltada para estrangeiros e colada ao Taikoo Li, um shopping aberto com grandes lojas das marcas europeias e americanas de luxo. Após nova consulta, foi receitado o chá de uma erva, por uma semana, ao custo de 548 yuans (R$ 427). A estrutura médica é mantida com apoio estatal, mas os tratamentos são pagos, inclusive pelos chineses, com preço menor.
Phoa Khee Liang, 69, vem fazendo acupuntura há três meses, duas vezes por semana, em reabilitação após a retirada de um câncer de cólon. Visa resgatar a sensação dos pés e a elasticidade no quadril, afetadas por radioterapia e quimioterapia.
“Foram duas experiências, e isso na verdade é bastante comum na China”, diz ele. “O tratamento do câncer foi num hospital especializado, no estilo da medicina ocidental. Já a neuropatia é com medicina tradicional.” Há dois meses, Pequim anunciou medidas para instalar ou ampliar departamentos de reabilitação em 70% dos hospitais de MTC.
No entender de Phoa, seus tratamentos confirmaram que há mais de uma maneira de lidar com a saúde. A medicina ocidental dominou por séculos, “mas agora está na hora do modo chinês de pensar, do modo indiano de pensar, eles que também têm livros de medicina, muito diferentes”. Na Holanda, país onde nasceu, acrescenta ele, a penetração de MTC é hoje generalizada.
Também no Brasil, onde um dos expoentes é Ernesto García González, médico cubano com residência em MTC no Exército de Libertação Popular, como são chamadas as forças armadas chinesas. “Eu já sabia chinês, e isso facilitou o estudo e o contato com essa medicina”, diz ele, que vem de lançar o primeiro volume de “Medicina Tradicional Chinesa – Princípios Teóricos”, com Rosana Zapala Sbright (Pro Salus).
Há um quarto de século em São Paulo, afirma não ter sentido resistência à MTC no Brasil, mas receptividade, como em outros países latino-americanos. “Aqui sempre é muito bem aceita, inclusive por pessoas carentes”, diz. “A elite econômica faz para relaxar, mas agora estou ajudando um projeto na cracolândia do Brás. É muito bacana ver como tem aceitação.”
Uma resolução do Conselho Federal de Medicina, de 1995, reconheceu a acupuntura como especialidade médica —e o CFM de tempos em tempos alerta que outros profissionais não podem praticar.
Segundo a Administração Nacional da Medicina Tradicional Chinesa, que tem um programa para sua promoção pelo mundo, ela está hoje em 196 países e regiões, tendo alcançado “reconhecimento por sua força na prevenção e controle de doenças e na reabilitação”. O órgão vem publicando clássicos da MTC, por autores como Huang Di Nei Jing e Ben Cao Gang Mu, ambos listados no Programa de Memória do Mundo da Unesco.
Alguns medicamentos, originalmente ervas, vêm recebendo chancela pelo mundo. Por exemplo, o site Jama (Journal of the American Medical Association) publicou um estudo amplo de testes controlados, concluindo que o chamado tongxinluo (na tradução do artigo, “para abrir as redes do coração”) reduz complicações após ataque cardíaco.
Ele é liberado pelo órgão chinês de medicamentos desde 1996, após testes em animais, e agora pode abrir caminho também nos laboratórios ocidentais. Mas o caso mais festejado na China e no resto do mundo é o da artemisina, para malária.
A pesquisadora chinesa Tu Youyou liderou uma equipe que, a partir do “Manual de Prescrições para Tratamentos de Emergência”, escrito por Ge Hong em 340 EC, estudou uma erva indicada por ele e por outros livros médicos, ao longo dos séculos seguintes, para tratar sintomas da malária. Conseguiu isolar o composto ativo e, em 2015, recebeu o Prêmio Nobel.
Entrevistada há cinco anos pelo China Daily, aos 89, ela procurou estimular “uma nova geração de cientistas” a fazer o mesmo: “A MTC é um grande tesouro. A China precisa incentivar os jovens a participar das pesquisas com ela. Claro, vai dar muito trabalho”.