Uma mulher de costas, com um lenço branco cobrindo a cabeça, carrega um bebê. Ao seu redor, quatro crianças pequenas. Três são meninos. A única menina, segurando um tecido volumoso entre as mãos, caminha na direção oposta ao grupo. Um gesto de desobediência ao fluxo que a cerca.
Essa imagem foi capturada pela fotógrafa Stefania Bril e integra a mostra Stefania Bril: desobediência pelo afeto, no Instituto Moreira Salles (IMS), em São Paulo. Primeira individual da artista em 30 anos, a exposição apresenta 160 imagens e destaca seu papel como crítica de fotografia, curadora e agitadora cultural.
“A fotografia dela ocorre no fluxo da vida”, aponta Miguel Del Castillo, curador da mostra, ao lado de Ileana Pradilla Ceron. “Diferentemente da ideia do [fotógrafo francês] Cartier-Bresson, que fala de um instante decisivo que geometricamente compõe a imagem perfeita, Stefania capta um momento que se desdobra depois. A fotografia dela se desenvolve no fluxo dos acontecimentos, onde surgem situações que torcem a ordem”, completa ele, em entrevista ao NeoFeed.
Por sua história, Stefania compreendia bem as reviravoltas da vida. Nascida em Gdansk, na Polônia, em 1922, ela passou a infância em Varsóvia. De família judaica, sobreviveu à perseguição das forças de Adolf Hitler, utilizando uma identidade falsa, passando-se por católica.
Após o fim da ocupação nazista na Polônia, em janeiro de 1945, Stefania mudou-se com a família para Lublin, ao sul da capital polonesa. Lá, ao escrever crônicas para a rádio local, descobriu seu talento para a comunicação. Meses depois, retornou a Varsóvia e começou a trabalhar na Polskie Radio.
A família se deslocou novamente, desta vez para Lodz, onde Stefania ingressou no curso de psicologia e conheceu Kazimierz Józef Bril. Em apenas dois meses de namoro, casaram-se e foram viver na Bélgica.
Convencida pelo marido, Stefania ingressou, com ele, no curso de química da Universidade Livre de Bruxelas. Com a ascensão da Guerra Fria e o medo de novas perseguições, o casal optou por se juntar à família no Brasil, desembarcando em Santos em 1950. Em 1951, Stefania começou a trabalhar no laboratório Endoquímica como assistente do bioquímico alemão Karl Heinrich Slotta, cientista responsável pela descoberta do hormônio feminino progesterona.
Com o nascimento da filha Michele-Annie, em 1953, desligou-se da empresa e, no ano seguinte, uniu-se ao marido na Orquima S.A., realizando pesquisas em química nuclear. Com a chegada da segunda filha, Jacqueline, Stefania encerrou a carreira como química.
“Eu acho que ela entrou numa crise, porque não queria ser apenas a acompanhante do marido”, diz Ileana, ao NeoFeed. “Stefania já havia abandonado muita coisa na vida.”
No início, foram as tulipas
Para preencher o vazio deixado pela vida profissional, começou a plantar tulipas, no apartamento de veraneio da família em Campos do Jordão, na Serra da Mantiqueira. Naquela época, era raro encontrar a flor no Brasil. Kazimierz trazia as sementes da Holanda e o que começou como um hobby logo se tornou uma fonte de renda, com Stefania vendendo as flores para hotéis da região.
Começou a fotografar sua criação de tulipas. Quando a amiga Alice Brill viu os registros, incentivou Stefania a fazer um curso. Assim, em 1969, aos 47 anos, ela se matriculou na escola Enfoco para aprender a técnica. Nascia ali sua nova profissão.
A câmera fotográfica de Stefania sempre estava na bolsa, acompanhando-a em todas as saídas. Ela se interessava por cenas que desviassem do normal cotidiano, como um homem com sombreiro entre pessoas de capacete.
“A gente brinca que são fotos do contra”, diz Ileana. “São detalhes sutis, mas recorrentes em sua obra, revelando um olhar constituído sobre o mundo. Não são fotos aleatórias, mas o modo de ver da Stefania.”
Ela também buscava poesia e mensagens subliminares na cidade. Em outra fotografia, uma família vive em vulnerabilidade social sob o outdoor de um banco, onde se lê a palavra “moleza”.
“Na fotografia dela, não há situações encenadas. São cenas da cidade que estão lá, mas que ninguém percebe. É uma forma de chamar a atenção: ‘Olha isso aqui, bem na sua frente’. As fotos têm muitas camadas e ironias”, explica a curadora.
Como a própria fotógrafa, certa vez, disse: “Continuo a ter uma visão poética e um tanto zombeteira do mundo, que às vezes se leva muito a sério”.
Stefania não fotografava com o intuito de publicar suas imagens em jornais, como os fotojornalistas; ou realizar o testemunho de um acontecimento como os fotógrafos documentais. Suas imagens funcionam como crônicas, usando ironia e humor para revelar peculiaridades do cotidiano. Para ela, o fotógrafo também era um artista.
Um ano após começar a fotografar, realizou sua primeira exposição individual em 1970, no Casarão do Clube Hípico de Santo Amaro. Com o ensaio As mãos, além de expor no showroom da loja Fotoptica, recebeu o Troféu Fotoptica em 1972. Dois anos depois, publicou no livro Entre, com apresentação do historiador e também fotógrafo Boris Kossoy. Em 1975, participou da Sala de Fotografia na 13ª Bienal Internacional de São Paulo
“O fotógrafo se entender como artista ainda não era evidente naquela época,” explica Ileana. “Os fotógrafos estavam discutindo o lugar da fotografia além do impresso ou documental.”
“Música de câmera”
Se suas fotos não estavam na imprensa, o pensamento de Stefania sobre a fotografia ocupava as páginas de revistas especializadas e do jornal O Estado de S. Paulo. De 1978 a 1990, atuou como crítica de fotografia, desempenhando essa função de forma pioneira na imprensa brasileira.
Fazer algo inédito nunca foi um desafio para ela. Em julho de 1978, idealizou e coordenou o I Encontro Fotográfico em Campos do Jordão, um festival pioneiro inspirado no Rencontres d’Arles, o primeiro grande festival internacional de fotografia, fundado em 1970, na França.
Como curadora, destacou-se com a exposição Brésil des brésiliens, na Biblioteca Pública de Informação, do Centre Georges Pompidou, em Paris, em 1983. Essa foi a primeira mostra dedicada à produção fotográfica de um país latino-americano no espaço, contribuindo para a visibilidade da produção brasileira no cenário internacional.
Em 1989, Stefania, junto a executivos da Fujifilm do Brasil, criou a Casa da Fotografia Fuji. “A Casa não tem apenas paredes. É moradia, aconchego. Portas sempre abertas”, definiu ao apresentar o espaço. A mostra inaugural, O olhar da F4, foi reconhecida como o melhor evento de fotografia de 1990, pela Associação Paulista de Críticos de Arte.
“Stefania é um case no Instituto Moreira Salles. Seu acervo é incomum, pois inclui não apenas fotografias, mas também um rico material documental”, explica Ileana, sobre o conjunto que reúne mais de 11 mil itens.
Isso corrobora o papel singular de Stefania na fotografia brasileira, uma profissional que não apenas produziu, mas também refletiu e criou espaço para o desenvolvimento da arte no país.
Em 1993, um ano depois da morte da fotógrafa, aos 70 anos, vítima de complicações decorrentes de uma hepatite, foi realizada a exposição Viva a Vida!, na Casa da Fotografia Fuji, em homenagem a ela.
Na ocasião, Olney Kruse, crítico, fotógrafo e amigo, escreveu: “As fotografias dela têm incomum relação entre mulher e artista. Ela fotografa a sua própria extensão. Como foi simples, são simples seus fotogramas. Nada de espetacular, grandioso, dramático. Stefania Bril não era ópera. Foi música de câmera. Tinha predileção notável pelos momentos banais desde que visceralmente poéticos.”