Kate tem 46 anos. Mãe de quatro crianças, ela conta: “A insegurança alimentar impactou minha vida de muitas maneiras; muito além do que eu imaginava ser possível. A escassez de alimentos deixou uma cicatriz emocional e comprometeu profundamente o modo como nos alimentamos. Nosso prazer pela comida foi lentamente destruído. Não há nenhum de nós que, agora, não lute contra a compulsão alimentar.”
Aos 51 anos, Precise também conhece o drama de não ter o que dar de comer ao filho: “Eu comprometi meu bem-estar, minha autoestima e meu orgulho para alimentar meu filho. A preocupação constante sobre de onde viria a próxima refeição me levou à depressão. Fui obrigada a priorizar a quantidade em detrimento da qualidade e hoje meu filho sofre bullying na escola por causa do excesso de peso. Com a insegurança alimentar, tudo se torna muito assustador”.
Jinx viveu a infância na incerteza da próxima refeição. Hoje, aos 20 anos, ele lembra: “Crescer em uma família, onde a oferta de comida não era regular, desencadeou em mim quadros depressivos graves, além de transtornos alimentares. Tínhamos de comer o que nos davam. Tentei o suicídio diversas vezes.”
Kate, Precise e Jinx estão entre os 6.177 ingleses adultos entrevistados pela ONG The Food Foundation, em uma pesquisa sobre a relação entre insegurança alimentar e doenças psiquiátricas. Um problema sobre o qual raramente se fala, mas que exige um novo olhar: a fome como uma questão também de saúde mental.
Divulgados no início de outubro, os resultados do levantamento Pushed to the brink: the UK’s interlinked mental health and food insecurity crises servem de alerta para formuladores de políticas públicas, médicos e psicólogos do mundo inteiro: pessoas sem acesso confiável à comida são duas vezes mais propensas a desenvolver um distúrbio psiquiátrico.
Sete em cada dez relatam sofrer crises de ansiedade e 67%, de depressão, mostram os dados da The Food Foundation. Há de se levar em conta ainda o aumento no risco de transtornos alimentares — como a próxima refeição é incerta, quando o alimento está disponível, exagera-se no seu consumo, o que pode deflagrar quadros compulsivos.
A insegurança alimentar aumenta ainda a probabilidade de abuso de álcool e drogas psicoativas — uma estratégia desesperada para mascarar a falta de comida.
“A fome é a maior violência que se pode submeter um ser humano e nenhuma calamidade pode desagregar a personalidade humana tão profundamente e em um sentido tão nocivo quanto a fome”, escreve Nilson Lira Lopes, ativista social, militante do Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR), no Rio Grande do Sul, na apresentação do livro Mas, se a gente é o que come, quem não come nada some!, da nutricionista Ana Carolina Einsfeld Mattos.
Pior ainda para quem tem filho. Além de lidar com a própria fome, as mães e os pais se veem às voltas com o sofrimento das crianças e com o terrível sentimento de fracasso por não conseguir garantir aos pequenos o mais básico dos recursos, aquele que precede todos outros — a comida regular e saudável.
As perdas econômicas
Se a insegurança alimentar potencializa os distúrbios psiquiátricos, o contrário também acontece, mostram os pesquisadores da The Food Foundation. Pacientes mentais graves têm o triplo de probabilidade de sofrer algum grau de insegurança alimentar. Fácil entender por quê.
A doença mental, sobretudo quando não tratada, compromete a capacidade produtiva de suas vítimas — o que, em última instância, repercute nos negócios e na economia.
No Brasil, os transtornos de origem psiquiátrica custam às empresas uma perda anual de R$ 397,2 bilhões, em faturamento. Para se ter ideia do tamanho do problema no cenário geral, os prejuízos chegam a 4,7% do PIB, indica estudo da Federação da Indústrias do Estado de Minas Gerais, de 2023.
Some-se a esses gastos, o custo com os 8,7 milhões de brasileiros que não têm o que comer nem sabem quando farão a próxima refeição. Considerados os outros dois níveis de insegurança alimentar, o moderado e o leve, o número de afetados sobe para 64 milhões de pessoas.
Os afastamentos por invalidez, as faltas no trabalho e o queda de produtividade tendem a repercutir em salários menores. E, a falta de dinheiro torna os doentes psiquiátricos mais suscetíveis à insegurança alimentar.
Mesmo quando a questão financeira não se impõe, eles costumam se alimentar de forma inadequada, do ponto de vista nutricional, indica o relatório da ONG inglesa.
Nos últimos anos, a ciência tem conseguido desvendar os mecanismos na relação entre dieta e saúde mental. O desequilíbrio começa no microbioma intestinal — o rico ecossistema “habitado” por trilhões de micróbios, responsáveis não só pelos processos digestivos, mas também pela regulação de todo o nosso organismo.
Na ausência de comida ou “abastecida” com as chamadas calorias vazias, a química cerebral desestabiliza, recrudescendo os sintomas do transtorno mental.
É um círculo vicioso, no qual a insegurança alimentar, a saúde mental precária e a pobreza são causa e efeito um do outro.
E suas vítimas não são apenas os famintos e/ou os doentes psiquiátricos. Mas, “a sociedade em geral, por causa de suas implicações econômicas”, reforçam os especialistas da The Food Foundation.