Aos 85 anos, Regina Silveira costuma ser avessa à ideia de exposições históricas. Em vez de mostras que se debrucem sobre sua carreira, ela prefere mostrar trabalhos inéditos para evidenciar que continua na ativa. “Sempre tenho esse incômodo, não gosto de olhar para trás”, diz ela, em conversa com o NeoFeed.
Artista multimídia e referência internacional na arte conceitual, com seis décadas de trajetória, Regina, no entanto, realiza até março de 2025, em Barcelona, na Espanha, a maior retrospectiva em torno de sua produção. E chega ao fim de 2024 como prefere, com uma novidade: em janeiro, inaugura três instalações no novo terminal do aeroporto de Houston, nos Estados Unidos, uma “trilogia visual” formada por imagens apropriadas de catálogos de insetos alados da fauna texana.
“É um projeto maravilhoso, que estamos desenvolvendo há dois anos, e também um feito inédito para um artista brasileiro, nos Estados Unidos”, ressalta ao NeoFeed Luciana Brito, ex-aluna de Regina no curso de artes plásticas da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), e sua galerista desde meados dos anos 1990.
Destructuras de poder está em cartaz no La Virreina, um centro cultural catalão focado principalmente nas questões da imagem. Ali, seu diretor, Valentín Roma, já montou exposições dedicadas, por exemplo, à intelectual americana Susan Sontag, autora do livro Sobre fotografia, 1977, e ao fotógrafo canadense Jeff Wall.
Como conta a brasileira Isabella Lenzi, curadora da mostra ao NeoFeed, esta seria também a maior panorâmica da carreira de Regina já realizada, “como arco temporal e projeto curatorial”, mais abrangente que as exposições Mil e um dias e outros e enigmas e Outros paradoxos, montadas respectivamente em 2011, na Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, e entre 2021 e 2022, no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP).
A mostra começou a ser gestada há quase três anos pela instituição espanhola e por Isabella, que, em suas pesquisas, dedica-se à produção de artistas entre as décadas de 1960 e 1980, com foco em arte conceitual.
Em seu mestrado, ela se voltou para as práticas artísticas daquele período, tanto no contexto das ditaduras no Brasil e em países vizinhos na América Latina, quanto em Portugal e na Espanha.
A primeira proposta para a Regina foi justamente trabalhar com a produção dela dos anos 1970 e 1980 — produções que, segundo Isabella, “dialogam diretamente com o presente, tanto no Brasil, como no contexto internacional.” Após a resistência inicial a uma exposição histórica, a artista concordou com o projeto.
“Eu também defendo que é uma espécie de origem e gênese de tudo que ela viria a fazer dali para frente”, diz a curadora. “Fosse por causa de questões formais ou de suas experiências com novos meios, seu interesse em tecnologia, num giro radical em sua produção, se pensarmos que ela foi formada como pintora, no contexto do sul do Brasil, muito conservador.”
Percepções da vida como mulher no mundo
Gaúcha de Porto Alegre, Regina se formou em 1959, em pintura, no Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (IA/UFRGS).
Teve também aulas de pintura com Iberê Camargo (1914-1994). Atribui-se a elas seus primeiros questionamentos acerca da representação nas artes visuais, forte marca de sua prática.
Segundo Isabella, quando Regina vai estudar história da arte na Faculdade de Filosofia e Letras de Madri na Espanha, em 1967, como bolsista do Instituto de Cultura Hispânica, ela entra em contato com artistas da poesia visual, ligados a novas técnicas de impressão e experimentações com vídeo.
Naquele mesmo ano, Regina conheceria o artista espanhol Julio Plaza (1938-2003), com quem ficaria casada de 1969 a 1987.
Em sua primeira sala, a retrospectiva recupera peças feitas entre 1969 e 1973, quando Regina deu aulas na Faculdade de Artes e Ciências, da Universidade de Porto Rico.
Ali também é exibido um conjunto de serigrafias produzido em 1971, em Porto Alegre, em que a artista se apropria de imagens dos meios de comunicação, para criar um diálogo entre a Guerra do Vietnã, para a qual alguns de seus alunos estavam sendo recrutados, e o contexto político brasileiro.
Mas a produção da artista nas décadas de 1970 e 1980 formam a maior parte da mostra. São mais de 120 obras, algumas delas pouco conhecidas ou vistas “soltas, fora de contexto”, diz a curadora.
Ela dá como exemplo a série Dilatáveis (1981), em que Regina explora projeções distorcidas, um conjunto retomado na 34ª Bienal de São Paulo, em 2020, e agora, na panorâmica. Há também “pinceladas” de sua prática dos anos 1990 até trabalhos recentes.
“São duas vertentes principais de meu trabalho. Uma, que apresenta a posição política de meus trabalhos. E outra, mais ligada à minha percepção, à minha vida como mulher no mundo, à minha crítica do cotidiano”, conta a artista.
Na série de serigrafias Middle Class & Co (1971-1972), Regina se debruça sobre a problemática do indivíduo na sociedade contemporânea, intervindo sobre fotografias com recortes e diagramações, por exemplo.
“São como caixas com multidões, que parecem estar vivendo em situação de clausura, de violência, censura e em prisões”, analisa Isabella. “São trabalhos altamente políticos, mas nada panfletários. A Regina fala da política a partir da ironia, a partir do desvio conceitual, do jogo de imagens”.
Muito bem acompanhada
A obra Pudim de Arte Brasileira (1977) “é uma crítica à arte brasileira política, panfletária, que não move comportamentos diante da realidade, não contribui em nada com o pensamento. Não passam de pinturas tradicionais, com tema político, para ficar em cima do sofá. É uma receita muito maldosa”, como explica Regina.
Em seguida viriam as litografias Anamorfas (1980), representações de objetos cotidianos em que a artista subverte as perspectivas por meio de dilatações, compressões, dobras.
E também a série In Absentia M. D. (1983), em que Regina pinta, no chão do espaço expositivo, sombras gigantes de obras do pintor francês Marcel Duchamp (1887-1968), com base em pedestais vazios.
A artista ressalta que sua experimentação com meios nunca refletiu um interesse por eles em si, mas pela crítica à imagem. E que essa opção está clara desde o início de sua filiação às técnicas industriais de produção de imagens, não somente na prática artística, como no ensino também.
“Mas eu queria dizer que não estou sozinha nisso. Isso se encontra também na história e tradição ilusionista. Desde as fantasmagorias do século 17, que estão na base da fotografia, do cinema e da televisão”, pondera. “Tudo isso é um canal só, crítico aos modos de entendermos o real. Então eu acho que estou muito bem acompanhada, historicamente, nesse meu percurso”.