VENEZA – Documentário exibido no 81º Festival de Veneza ajuda a explicar a genialidade do ícone da animação japonesa Hayao Miyazaki e de seu Studio Ghibli, que há quatro décadas dá profundidade e sofisticação ao gênero.
O foco de Miyazaki, l’Esprit de la Nature (Miyazaki, o Espírito da Natureza) é sobre a preocupação do cineasta de 83 anos com o meio ambiente, refletida em obras-primas como Nausicaä do Vale do Vento (1984), Meu Amigo Totoro (1988), Princesa Mononoke (1997) e A Viagem de Chihiro (2001), entre outras.
Seja com florestas povoadas por criaturas mágicas ou com uma natureza furiosa por causa dos abusos sofridos, Miyazaki construiu uma filmografia questionando a relação do homem com todas as coisas vivas.
Ao longo de sua trajetória, o diretor, acostumado a encantar a plateia com paisagens silvestres de tirar o fôlego, nunca conseguiu ignorar a capacidade destrutiva da humanidade — embora algumas vezes ele prefira apostar na regeneração da natureza, por ser algo sagrado.
“Para apreciar profundamente a obra de Miyazaki, um dos artistas vivos mais reverenciados no mundo, é preciso analisá-lo em um contexto ambiental”, contou ao NeoFeed o diretor do filme, o francês Léo Favier.
Ele desembarcou no Lido de Veneza, estância balneária onde é realizado o festival italiano, às margens do Mar Adriático, para a première mundial do título que foi selecionado para a mostra Venice Classics, dedicada à memória do cinema.
A natureza é, muitas vezes, impactada nas histórias de Miyazaki por essas refletirem uma sociedade obcecada por conquistas, guerras e consumismo.
“Por mais que o cineasta tenha mudado e evoluído ao longo das décadas, seus filmes foram sempre carregados de guerra e destruição, o que também espelha o que ele enfrentou ainda na infância, moldando a sua visão de mundo”, afirmou Favier.
O documentarista se refere ao fato de Miyazaki ter sobrevivido a bombardeios, quando tinha entre três e quatro anos, ocasiões em que a sua família foi forçada a trocar de cidade. E o pai de Miyazaki ainda foi diretor de fábrica que confeccionava lemes para aviões de combate durante a Segunda Guerra.
Isso explica sua fascinação por aviação e, ao mesmo tempo, a culpa que o diretor já admitiu sentir por sua família ter feito dinheiro com a guerra.
“Nada é preto no branco nos seus filmes de Miyazaki, que sempre abraçou as contradições. Ele deixa que as situações sejam bagunçadas e complicadas, exatamente como é a vida, sem se limitar pensando em uma faixa etária específica para cada história”, comentou Favier.
O fato de suas obras serem concebidas para entreter todas as idades (e não apenas crianças) é o que garantiu mais profundidade, levantando questões filosóficas, sociais e políticas.
Um dos filmes mais ecológicos de Miyazaki foi Princesa Mononoke, onde mais de 144 mil desenhos feitos à mão dão vida a todo um ecossistema, com árvores, plantas, animais e espíritos dividindo uma paisagem estonteante, à beira da extinção. Mas o tom de alarme, pelo conflito aparentemente irremediável entre a natureza e a industrialização, não o impediu de acrescentar lirismo à trama, já que a floresta tem alma própria.
Segundo o biólogo Shin-Ichi Fukuoka, entrevistado no documentário, Princesa Mononoke se baseia em duas grandes questões: o que é a vida e o que é ser um humano. “No final, Miyazaki nos faz entender que nós somos parte da natureza, não muito diferente dos outros organismos em termos de mecanismo celular e DNA”, comentou o especialista.
Foi graças ao sucesso de Nausicaä do Vale do Vento, ambientado em futuro distópico onde a humanidade está ameaçado por um ar tóxico e insetos gigantes, que Miyazaki conseguiu fundar o Studio Ghibli.
A cena de abertura, com a princesa Nausicaä pousando em floresta estranha, porém majestosa, dá uma ideia da reconciliação almejada pelo cineasta. E muito antes de a questão ambiental se tornar um tema recorrente na produção audiovisual.
“O que Miyazaki sugere aqui é a interação entre natureza e seres humanos. Em vez de o homem insistir em dominar a natureza, ele deveria se engajar com ela, de modo respeitoso. O que sentimos é uma inteligência amorosa e uma consciência de que todos estamos conectados no universo”, comentou a escritora Susan Napier, autora do livro Miyazakiworld: a Life in Art, também em depoimento no filme.
O documentário examina outros filmes que refletem a grandiosidade da natureza, pelas lentes de Miyazaki, como Meu Amigo Totoro. Aqui o que ajuda duas irmãs a enfrentarem uma fase difícil, com a mãe hospitalizada, são as aventuras que vivenciam com os espíritos da floresta, conhecido como “totoros”.
É com esses seres fantásticos, em especial com o líder deles, que a dupla aprende a encarar a dura realidade, mas sem se esquecer da beleza, da poesia e da magia da vida, em tudo o que nos cerca.