Foi preciso confiar em algumas pessoas para virar o jogo quase perdido do meu alcoolismo. Lidar com essa doença silenciosa e sutil requer algo que não temos muito hoje em dia, que é a confiança no outro ser humano. Um dos meus médicos, aquele que me deu suporte quando eu tive um surto, me disse: “Alice, você precisa confiar em mim.” Porque à medida que me sentia jogada às margens do meu grupo social, sem ninguém para conversar ou mesmo entender o que estava se passando, fui me isolando ainda mais. E aqui lembro da questão da semana passada: o perigo do isolamento.
Falar da minha doença soa repetitivo, e é. Muitas vezes em sala de AA ouvimos as mesmas histórias, muitos clichês… Mais de uma vez uma amiga me alertou ao ler meus textos, antes de serem publicados: “Tem muito lugar-comum!”. Mas é isso mesmo: as situações e as sensações se repetem…
Teimosa que sou, demorei a abrir a mente e aceitar sugestões, conselhos e tratamento. Na falta de um diagnóstico preciso, é necessário ter muita confiança no médico, e ouvir muito a mesma coisa. É a típica situação de água mole em pedra dura… Ela acaba furando a pedra. Esse milagre é uma conjunção de muitas coisas: confiança no profissional, escuta atenta por parte dele e os tombos que vão ficando cada vez piores. Tem uma hora que chega! (outro clichê). Se você frequenta uma sala de AA, sabe das mensagens que colocamos em letras garrafais.
Eu sempre ouvi que bebia demais. Eu mesma, no fundo, também sabia que tinha alguma coisa errada no modo como eu bebia, mas daí até zerar de vez o consumo era demais… Ai de alguém que me sugerisse para deixar a bebida… Eu reagia ferozmente, achava que a pessoa queria tirar algo precioso de mim. Não suportava a ideia de abdicar de uma coisa que tinha me proporcionado uma vida possível (e tão ruim, hoje sei, mas na época eu não conseguia me dar conta).
Nessa minha fidelidade ao álcool, desconfiava de todo mundo que me olhasse torto quando eu entrava no quarto ou quinto copo. Ou se era recriminada ao flertar com uma bebida pela manhã (primeiro nas manhãs de sábado, depois de qualquer dia da semana). Fosse quem fosse, se viesse se meter entre mim e o álcool, eu detonava e/ou limava da minha lista de convívio. Salvo se fosse da família, aí não tinha jeito.
O álcool me tirou a capacidade de acreditar, de sonhar e sobretudo de confiar nas pessoas. Achava, por exemplo, que minha prima queria meu mal quando sugeria que talvez a solução fosse optar por programas alternativos, sem bebida. Eu ficava com raiva, com ódio, e me afastava. Perdia a cumplicidade e a confiança. Agia do mesmo jeito como tratava os médicos: ia embora e trocava de profissional quando meu problema com álcool virava uma questão.
A confiança que depositei no dr. E. me propiciou uma virada de chave. Ele sempre foi muito educado, gentil e solidário, mas ao mesmo tempo firme na sua posição quanto ao álcool. Se eu começava a discutir, ele parava e me ouvia, e não dizia mais nada. Aquele silêncio foi me incomodando, foi me incentivando a pensar. Ele sempre estava ali para mim, me atendia de uma forma espetacular, mas não me omitia verdades. Ele me explicava, como que para uma criança, o que o álcool fazia comigo. Às vezes me irritava muito. Mas quando eu o afrontava, ele simplesmente me ouvia com um sorriso calmo e um semblante tranquilizador.
No fundo é isso, a confiança com ele se deu porque ele nunca falou mal do álcool, ele simplesmente foi me mostrando, aos poucos, que a substância não me fazia bem. Me apontava novos caminhos e, o mais importante, me levava a sério. Nunca esqueço de quando passei a morar com minha irmã e comecei a dar trabalho. Ela ligou para ele, que a atendeu mas alegou que estava com outra paciente. E pediu que ela me dissesse, enfática, que na hora da ligação ele estava com uma pessoa que tentava suicídio. O choque da realidade e a importância que ele dava para o meu caso foi tornando nossa relação muito boa e efetiva ao tentar quebrar a barreira inexpugnável que eu construía com a bebida.
Hoje não bebo nada de álcool já há alguns anos, tento ser honesta comigo e com os outros (mentir me machuca porque me lembra o período da ativa). Com esse cenário mais transparente, começo a observar os outros e tento identificar pessoas que falam a mesma língua que eu, que podem não só humanizar minha doença como me considerar.
Sou alcoólatra e trabalho, tenho amigos, tenho uma vida. Tudo isso porque estou em recuperação. E mais uma vez cito aqui a minha editora da Folha de S.Paulo: Obrigada, Mariana, por ter sempre me acolhido muito bem. A confiança em você tornou possível esse blog. E pelo que recebo de mensagens, sei que ele está ajudando algumas pessoas a elucidar esse caos que é o alcoolismo.
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