Animais infectados com gripe aviária são um risco para nós – 23/04/2024 – Equilíbrio e Saúde


Em suas três décadas trabalhando com elefantes-marinhos, Marcela Uhart nunca tinha visto nada parecido com a cena nas praias da Península Valdés, na Argentina, em outubro passado.

Era a época de acasalamento; a praia deveria estar cheia de haréns de fêmeas férteis e enormes machos lutando por dominância. Em vez disso, era “apenas carcaça sobre carcaça sobre carcaça”, lembrou Uhart, que dirige o programa de saúde da vida selvagem da América Latina na Universidade da Califórnia, Davis.

O H5N1, um dos muitos vírus que causam a gripe aviária, já havia matado pelo menos 24 mil leões-marinhos na América do Sul ao longo das costas do continente em menos de um ano. Agora, ele havia chegado aos elefantes-marinhos.

Filhotes de todas as idades, desde recém-nascidos até os desmamados, jaziam mortos ou morrendo na linha da maré alta. Filhotes doentes ficavam apáticos, com espuma escorrendo de suas bocas e narizes.

Uhart chamou isso de “uma imagem do inferno”.

Nas semanas seguintes, ela e uma colega —protegidas da cabeça aos pés com luvas, aventais e máscaras, e periodicamente se banhando com água sanitária— documentaram cuidadosamente a devastação. Membros da equipe ficaram no topo dos penhascos próximos, avaliando o impacto com drones.

O que eles encontraram foi impressionante: o vírus havia matado cerca de 17.400 filhotes de foca, mais de 95% dos animais jovens da colônia.

A catástrofe foi a mais recente em uma epidemia de gripe aviária que se espalhou pelo mundo desde 2020, levando autoridades em vários continentes a abater aves e outros pássaros em milhões. Apenas nos Estados Unidos, mais de 90 milhões de aves foram abatidas em uma tentativa fútil de deter o vírus.

Não há como parar o H5N1. Os vírus da gripe aviária costumam ser seletivos em relação aos seus hospedeiros, geralmente aderindo a um tipo de ave selvagem. Mas este rapidamente infectou diversos animais, desde esquilos e gambás até golfinhos-nariz-de-garrafa, ursos polares e, mais recentemente, vacas leiteiras.

“Em minha pesquisa com a gripe, não vimos nenhum vírus expandir sua gama de hospedeiros como este”, disse Troy Sutton, virologista que estuda vírus da gripe aviária e humana na Universidade Estadual da Pensilvânia.

O impacto nos mamíferos marinhos, e nas indústrias de laticínios e aves, é motivo para preocupação. Mas um risco maior, disseram os especialistas, é que o vírus parece estar se adaptando aos mamíferos, se aproximando de se espalhar entre as pessoas.

Uma pandemia humana não é de forma alguma inevitável. Até agora, pelo menos, as mudanças no vírus não indicam que o H5N1 possa causar uma pandemia, disse Sutton.

Ainda assim, ele disse: “Realmente não sabemos como interpretar isso ou o que significa”.

Uma cepa altamente patogênica de H5N1 foi identificada em 1996 em aves aquáticas domésticas na China. No ano seguinte, 18 pessoas em Hong Kong foram infectadas com o vírus, e seis morreram. O vírus então ficou em silêncio, mas ressurgiu em Hong Kong em 2003. Desde então, causou dezenas de surtos em aves e afetou mais de 800 pessoas que estavam em contato próximo com as aves.

Ao mesmo tempo, ele continuou a evoluir.

A versão do H5N1 que está se espalhando pelo mundo emergiu na Europa em 2020 e se espalhou rapidamente para a África e Ásia. Matou dezenas de aves de criação, mas, ao contrário de seus antecessores, também se espalhou amplamente entre aves selvagens e muitos outros animais.

A maioria das infecções em mamíferos provavelmente foi de casos “sem saída”: uma raposa, talvez, que comeu um pássaro infectado e morreu sem transmitir o vírus. Mas alguns surtos maiores sugeriam que o H5N1 era capaz de mais.

A primeira pista veio no verão de 2022, quando o vírus matou centenas de focas na Nova Inglaterra e Quebec. Alguns meses depois, ele provocou novos casos em uma fazenda de visons na Espanha.

Nos visons, pelo menos, a explicação mais provável era que o H5N1 havia se adaptado para se espalhar entre os animais. A escala dos surtos em mamíferos marinhos na América do Sul reforça esse risco.

“Até intuitivamente, eu diria que a transmissão de mamífero para mamífero é muito provável”, disse Malik Peiris, um virologista e especialista em gripe aviária na Universidade de Hong Kong.

Depois de ser detectado pela primeira vez na América do Sul, em aves na Colômbia em outubro de 2022, o vírus se espalhou pela costa do Pacífico até a Terra do Fogo, a ponta mais ao sul do continente, e subiu pela costa do Atlântico.

No caminho, ele matou centenas de milhares de aves marinhas e dezenas de milhares de leões-marinhos, no Peru, Chile, Argentina, Uruguai e Brasil. Os leões-marinhos se comportaram de forma errática, experimentando convulsões e paralisia; fêmeas grávidas abortaram seus fetos.

“O que aconteceu quando o vírus se espalhou pela América do Sul nunca foi visto antes”, disse Uhart.

Exatamente como e quando o vírus pulou para os mamíferos marinhos não está claro, mas os leões-marinhos provavelmente entraram em contato próximo com aves infectadas ou fezes contaminadas. (Embora os peixes compõem a maior parte da dieta dos leões-marinhos, às vezes eles comem pássaros.)

Em algum momento, é provável que o vírus tenha evoluído para se espalhar diretamente entre os mamíferos marinhos: na Argentina, as mortes de leões-marinhos não coincidiram com a mortalidade em massa de aves selvagens.

“Isso pode sugerir que a fonte de infecção não foram as aves infectadas”, disse Pablo Plaza, veterinário de animais selvagens da Universidade Nacional de Comahue e do Conicet (Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Técnica) da Argentina.

Não é difícil imaginar como o vírus pode se espalhar nesses animais: as focas-elefantes e os leões-marinhos se reproduzem em colônias, se aglomerando em praias onde brigam, acasalam e latem uns para os outros. As focas-elefantes espirram o dia todo, dispersando grandes gotículas de muco cada vez que o fazem.

É difícil provar exatamente como e quando o vírus passou de uma espécie para outra. Mas a análise genética favorece a teoria de que os mamíferos marinhos adquiriram suas infecções uns dos outros, não das aves. Amostras do vírus isoladas de leões-marinhos no Peru e no Chile e de focas-elefantes na Argentina compartilham cerca de 15 mutações não vistas nas aves; as mesmas mutações também estavam presentes em um homem chileno que foi infectado no ano passado.

Existem inúmeras oportunidades para o H5N1 saltar dos mamíferos marinhos para as pessoas. Uma foca-elefante macho doente que ficou um dia e meio em uma praia pública na Argentina acabou carregando enormes quantidades do vírus. No Peru, cientistas coletaram amostras de carcaças de leões-marinhos que estavam ao lado de famílias desfrutando um dia na praia.

Animais necrófagos, como cães, também podem pegar o vírus de uma carcaça infectada e depois espalhá-lo mais amplamente, diz Wendy Puryear, virologista da Universidade Tufts que estou os surtos de H5N1 em focas na Nova Inglaterra. “Nenhuma vida selvagem existe isolada de outras.”

Em alguns países da América do Sul, além de algumas carcaças que foram enterradas, o restante permaneceu nas praias, apodrecendo e sendo devorado.

“Como você remove 17 mil animais mortos no meio do nada, em lugares onde nem mesmo é possível levar máquinas?” disse Uhart.

Um vírus em mutação

Os vírus da gripe são hábeis em adquirir novas mutações; quando dois tipos de vírus da gripe infectam o mesmo animal, eles podem misturar seu material genético e gerar novas versões.

Não está claro exatamente como, e em que medida, o vírus H5N1 mudou desde que surgiu pela primeira vez. Um estudo do ano passado mostrou que depois que o vírus entrou nos Estados Unidos ele rapidamente se misturou com outros vírus influenza circulantes e se transformou em várias versões — algumas leves, outras causando graves sintomas neurológicos.

“Após 20 anos de rearranjo você tem um vírus que na verdade se sai extraordinariamente bem em uma variedade de espécies de aves e mamíferos”, disse Vincent Munster, virologista do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas que estudou as mutações necessárias para o H5N1 se adaptar às pessoas.

Cada nova espécie que abriga o vírus cria oportunidades para o H5N1 continuar a evoluir e a saltar para as pessoas.

E o vírus pode encontrar mutações que ninguém ainda considerou, permitindo que ele ultrapasse a barreira das espécies. Foi o que aconteceu no surto de gripe suína de 2009.

Aquele vírus não tinha as mutações consideradas necessárias para infectar as pessoas facilmente. Em vez disso, “ele tinha outras mutações que ninguém conhecia ou pensava antes”, afirma Louise Moncla, bióloga evolutiva que estuda a gripe aviária na Universidade da Pensilvânia.

Ainda assim, mesmo que o vírus passe para as pessoas, podemos não ver o nível de mortalidade que realmente nos preocupa, diz Seema Lakdawala, virologista da Universidade Emory. “A imunidade pré-existente às cepas sazonais da gripe fornecerá alguma proteção contra doenças graves.”

E agora?

Os EUA estão preparados para uma pandemia de influenza, mas seus esforços de vigilância e monitoramento do vírus podem não detectá-lo rápido o suficiente para aplicar essas estratégias.

Só após várias semanas fazendeiros e funcionários perceberam que o H5N1 estava circulando em vacas leiteiras.

O surto nas fazendas resultou em apenas uma infecção humana leve, mas estas são terreno fértil para o salto entre espécies —de gato para vaca para porco e humano, em qualquer ordem.

Muitos cientistas se preocupam especialmente com os porcos, que são suscetíveis tanto às cepas humanas quanto às avícolas da gripe, fornecendo o ambiente perfeito para os vírus trocarem genes. Os porcos são abatidos ainda muito jovens, e as novas gerações, sem exposição prévia à gripe, são particularmente vulneráveis a infecções.

Até agora, o H5N1 não parece ser hábil em infectar porcos, mas isso pode mudar à medida que adquire novas mutações.

“Eu nunca deixo meus filhos irem a uma feira estadual ou fazenda de animais”, diz Lakdawala. “E é principalmente porque sei que quanto mais aumentamos as interações com animais, mais riscos existem.”

Caso o H5N1 se adapte às pessoas, os agentes federais precisarão trabalhar em conjunto com autoridades internacionais.

De certa forma, a disseminação atual entre as vacas leiteiras é uma oportunidade para praticar a colaboração, diz Rick Bright, CEO da Bright Global Health, uma empresa de consultoria que se concentra em melhorar as respostas a emergências de saúde pública. Mas o Departamento de Agricultura dos EUA está exigindo apenas testes voluntários em vacas e falta transparência e oportunidade, afirma.

Rosemary Sifford, veterinária-chefe do departamento, disse que a equipe está trabalhando dia e noite para compartilhar informações o mais rápido possível. “Isso é considerado uma doença emergente”, disse ela.

As autoridades governamentais em geral são cautelosas e pedem mais dados. Mas “dada a rapidez com que isso pode se espalhar e a doença devastadora que pode causar se nossos líderes hesitarem e não acionarem os mecanismos no momento certo, seremos pegos de surpresa mais uma vez”, afirma Bright.

“Se não entrarmos em pânico, mas dermos o respeito e a devida diligência”, acrescentou, fazendo alusão ao vírus, “acredito que podemos gerenciá-lo.”

Este artigo foi originalmente publicado no The New York Times.



Fonte: Folha de São Paulo

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