Em 2023, tomamos a difícil decisão de encerrar a Mercê, uma startup que cofundamos em 2019 e para a qual passamos quatro anos dedicando nossa paixão, energia e experiência empreendedora. Nossos instintos apontavam que seria a escolha certa na época.
Agora, com a perspectiva do tempo, ficou ainda mais claro que interromper as operações e devolver o capital restante aos nossos investidores foi a melhor decisão que poderíamos ter tomado.
Em uma conversa recente com Arjuna Costa e Diana Narváez, da Flourish Ventures, uma de nossas investidoras, refletimos sobre quão valiosa foi essa experiência, mesmo que o resultado não tenha sido o que esperávamos.
A maioria das startups falha e, ainda assim, há pouca orientação para empreendedores que suspeitam que a ideia em que estão trabalhando pode nunca ter sucesso, que não conseguem ver um caminho sustentável para sua empresa, que simplesmente não estão na janela correta e mercado para a tese ou até mesmo que não têm certeza de como proceder.
Em nosso caso, os pilares de apoio que tivemos nos permitiram aprender lições das quais esperamos que outros fundadores possam se beneficiar.
Cofundamos a Mercê como um marketplace B2B que permitia aos pequenos varejistas de alimentos e de produtos de mercearia adquirir estoque de forma mais eficiente, evitando faltas e acessando capital de giro, oferecendo-lhes ferramentas de software para ajuda-los a gerenciar seus negócios por meio de um aplicativo para smartphone.
Em 2021, o negócio era operacionalmente intensivo, e levantamos uma rodada de financiamento Série A de US$ 10 milhões, coliderada pela Flourish Ventures e GFC.
A tomada de decisão
À medida que percebemos a mudança no ambiente de financiamento de startups no início de 2022, concluímos que um modelo de negócios, com margens pequenas e com alta dependência de escala para gerar poder de barganha, exigiria rodadas adicionais de financiamento para crescer e tornar-se sustentável.
O mercado, que parecia ter condições para que startups compensassem sua falta de tamanho com alto poder de crescimento, em um momento em que os juros americanos vinham de uma consistente sequência de baixa, mudou e as condições se tornaram ruins em especial para o mercado de venture capital — sobretudo para negócios operacionais e em fase de crescimento naquela época. Parecia um caminho improvável para o sucesso.
Rapidamente, mudamos nosso foco em busca de margens mais altas. Questionamos algumas de nossas suposições, realizamos uma série de experimentos para ver se poderíamos chegar a um modelo de negócios leve em capital e impulsionado por tecnologia, mantendo nosso foco em capacitar pequenos proprietários de lojas locais.
Fomos disciplinados e, junto do nosso board, definimos um prazo para avaliar esses esforços, que seriam orientados por métricas claras.
Entre o fim de 2022 e o início de 2023, também começamos a explorar possibilidades de uma fusão ou aquisição da nossa operação por uma empresa maior e bem estabelecida, o que nos daria o poder de barganha devido a seu alto volume de compra.
Enquanto isso, nós adicionaríamos tecnologia à operação, o que permitiria melhorar nossas margens. Tivemos conversas com parceiros estratégicos, investidores e grupos de private equity interessados na tecnologia da Mercê, mas o diálogo não avançou. E, no primeiro trimestre de 2023, decidimos parar as operações e preservar o caixa, que representava 70% do que havíamos levantado em nossa Série A.
Propusemos três opções naquele momento: começar um novo negócio do zero, buscar fusão com uma startup já com validação de mercado e ainda em estágio inicial, na qual o nosso capital restante pudesse gerar valor, ou devolver o caixa disponível aos nossos investidores.
Rapidamente descartamos um novo negócio — o mercado parecia favorecer startups que trabalhavam com tendências como IA e modelos asset light, que não se alinhavam com os interesses de todos os sócios em começar algo do zero, bem como com as expectativas dos nossos investidores, em especial os que se preocupavam legitimamente com o timing de seus fundos e com seus mandatos por segmentos de mercado e modelos.
Após uma busca sistemática de empresas em estágio inicial, encontramos um alvo promissor e nosso Conselho apoiou que seguíssemos essa opção. No entanto, após meses de tratativas, o negócio não se concretizou. Nesse momento, nós, como fundadores, junto do Conselho e de nossos investidores, tomamos a decisão de prosseguir com a dissolução da empresa e devolver o que restava do caixa.
Antecipando a tempestade e redefinindo “fracasso”
Essa jornada com a Mercê nos mostrou a realidade: mesmo com uma equipe muito talentosa, uma ideia inovadora e os recursos para executá-la, as condições de mercado importam. Modelos de negócio não podem ser criados e validados em qualquer momento e condição de mercado.
Também entendemos que é imperativo manter-se atento às tendências de mercado que afetarão seu negócio — mudanças no ambiente de financiamento, ações dos concorrentes, novos entrantes e incumbentes, e a evolução dos modelos de negócios — para antecipar quando uma tempestade está chegando.
Se os sinais mudaram e se tornaram ruins, então não é “fracasso” reconhecer esse fato e se planejar para minimizar os danos. É como se preparar para fazer um cruzeiro com os melhores marinheiros em um mar estável, mas descobrir que o mar mudou e uma das maiores tempestades que já existiram vai acontecer exatamente naquele período.
Nesse cenário adiar ou cancelar a viagem não é uma decisão errada, especialmente se rotas alternativas já foram analisadas e não se mostraram viáveis.
Além das questões de mercado, no nosso caso, descobrimos que a disposição dos microempreendedores de pagar por produtos de software na América Latina era muito baixa, uma situação que não conseguimos gerenciar. Diante de condições de mercado desafiadoras e atentos às tendências, tornou-se claro que estávamos lutando a guerra errada e em um dos momentos mais desfavoráveis.
Sabíamos que tínhamos de considerar cuidadosamente o que era melhor para nossa equipe e nossos investidores. Prosseguir de forma teimosa ou cega, sem uma real chance de alcançar nossos objetivos, não era o caminho certo ou racional. Devolver o dinheiro foi uma decisão difícil de aceitar, mas também foi a coisa certa a fazer.
O valor da experiência
Todas essas mudanças e decisões vieram com estresse intenso, mas, como empreendedores em série, tínhamos a formação, a experiência e a maturidade para lidar com a complexidade da situação com clareza. Ambos tivemos experiências bem-sucedidas em startups no passado e, de certa forma, sentimos que tínhamos menos a provar do que um fundador de primeira viagem.
Não duvidamos de nossas próprias habilidades, e nosso processo de pensamento não se tratava de ego, validação de nossa reputação ou demonstração de paixão. Mas, sim, de ser racionais e cuidar do nosso time e do dinheiro de nossos investidores. Demonstrar resiliência é importante, mas nenhuma resiliência mudaria os fortes ventos contrários que enfrentamos.
Um dos pilares da nossa cultura é ter pessoas em primeiro lugar. Também discutimos muito este tema no processo, afinal, montamos um time excelente, extremamente dedicado e com valores muito alinhados. Nossa conclusão, em linha com nossa cultura, é que não seria justo colocar todos esses talentos por anos em uma direção que não entendíamos ser a melhor possível para eles.
Nossa decisão foi dar o máximo para sermos transparentes e ajudá-los a se realocarem em empresas em que confiamos.
Sabíamos que precisávamos estar alinhados como fundadores, contar um com o apoio um do outro e mostrar à nossa equipe que estávamos unidos. Sentimos que era importante ser abertos, honestos e até vulneráveis sobre o que estava acontecendo, mesmo que as notícias não fossem o que as pessoas queriam ouvir. Estávamos determinados a manter todos informados, não apenas sobre o que estava acontecendo, mas também sobre o porquê, e essa transparência tornou o processo de encerramento menos doloroso.
Gerenciando pressões externas
A comunicação clara também foi um ponto chave com nossos stakeholders. Ao considerarmos se havíamos chegado a um ponto de inflexão, conversar com nossos investidores foi imensamente útil. O conhecimento deles sobre o setor permitiu que pudessem ver a tempestade se aproximando e nos ajudou a agir antes dos concorrentes.
Eles puderam oferecer essa visão porque fomos transparentes sobre os desafios que estávamos enfrentando, o que, novamente, surgiu de nossa experiência empreendedora, pois muitas vezes pode parecer contra intuitivo ser tão aberto com os investidores.
Frequentemente, fundadores mais jovens e menos experientes evitam pedir apoio porque sentem pressão para agir de forma perfeita, lidar com tudo e ser super-heróis, mas ninguém espera isso.
Dito isso, para se sentir confortável com um diálogo aberto, e para que essas conversas sejam produtivas, o alinhamento e a confiança entre fundadores e investidores são fundamentais. Deve haver uma base de respeito mútuo e valores compartilhados para que um fundador possa contar com os investidores em busca de apoio, especialmente quando os tempos ficam difíceis.
Além disso, investidores que compreendem profundamente seu negócio e seu mercado terão conselhos muito mais específicos para oferecer do que alguém que traz apenas dinheiro para a mesa.
Em última análise, ao fechar a Mercê quando e como fizemos, garantimos que haveria muito mais oportunidades para todos os envolvidos — para nossa equipe, para nossos investidores e para nós.
O fim da história, diferente do que sonhamos, não minimiza o orgulho do que construímos como time. E nos deixa ainda mais empolgados pelo que vem a seguir.
Diego Libanio e Guilherme Bonifácio são empreendedores em série e, depois de quatro anos da fundação da Mercê, decidiram encerrar as operações da startup.