Um dos líderes mundiais em número de transplantes de órgãos, o Brasil enfrenta altas taxas de recusa na doação e outros entraves que fazem com que, em média, cerca de 3.000 pessoas morram por ano enquanto aguardam a cirurgia. Só no primeiro semestre deste ano, foram 1.793 mortes, sendo 46 crianças.
De janeiro a junho, foram feitos 4.579 transplantes de órgãos, 8.260 de córnea e 1.613 de medula óssea. Até junho, 64.265 adultos e 1.284 crianças estavam na lista de espera do Sistema Nacional de Transplantes, segundo dados da ABTO (Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos).
Entre os adultos, a maior fila de espera é por rim (35.695), seguido de córnea (26.409) e fígado (1.412). Entre as crianças, lideram córnea (749), rim (396) e fígado (75).
A taxa média de espera por um órgão é de 18 meses, mas o tempo varia bastante de acordo com o tipo de transplante, as condições clínicas do paciente e o volume de doadores.
A espera do paranaense Maycon de Almeida Moreno, 35, por um coração terminou em maio deste ano. Ele aguardava havia um ano e meio por um doador compatível. “A doação de órgãos mudou a minha vida. Temos que quebrar esse preconceito da doação de órgãos e doar porque a doação salva vidas.”
O Paraná é o estado com maior número de doações por milhão de população (pmp) no país, de acordo com a ABTO. De janeiro a junho, registrou 42,3 doações pmp, seguido por Rondônia (40,5 pmp), Santa Catarina (40,7 pmp) e Rio de Janeiro (27,0 pmp). A média nacional é de 19,5 pmp.
A recusa familiar continua sendo a principal causa da não doação de órgãos, segundo dados da ABTO. No país como um todo, a média atual é de 45% de recusas, mas há grande variação regional. Por exemplo, no Paraná é de 25%, e no Acre, de 77%.
Essas negativas têm grande impacto no número de transplantes. Em 2023, o Brasil realizou apenas um quarto dos transplantes cardíacos necessários, por exemplo. Isso significa que 138 pacientes morreram enquanto esperavam por um coração novo.
Segundo o médico Valter Garcia, responsável pela Unidade de Transplante de Rim e Pâncreas da Santa Casa de Porto Alegre (RS) e um dos fundadores da ABTO, são vários os fatores que determinam a recusa ou aceitação da doação de órgão no momento em que a morte encefálica é declarada.
“É sempre um processo inesperado e muito dramático para as famílias. Não estamos falando da nossa avó de 90 anos que descansou. É o filho que teve um acidente, é o irmão que teve um derrame cerebral.”
Um dos fatores determinantes, diz ele, é a percepção prévia sobre o ato da doação. “Se eu sou contra, se acho que tem comércio e que só rico recebe, não é na hora da morte de um filho que você vai me provar o contrário.”
Um outro fator é o atendimento no hospital. “Se você vai lá visitar o seu familiar que teve um acidente e está na UTI [Unidade de Terapia Intensiva], e o porteiro não te deixa entrar porque a visita é só às 20h, e você não consegue falar com médico, quem fala com você é só a auxiliar de enfermagem, isso não é bom.”
O treinamento do entrevistador na hora de informar a família sobre a morte também tem impacto na decisão. “As pessoas precisam estar preparadas para dar um bom acolhimento, mostrar que não existe comércio, que todos são beneficiados. Você não pode entrevistar os familiares rindo, atendendo o celular ou com pressa”, diz Garcia.
Para Michele Canato Costa, filha de um doador do Paraná, a forma como a equipe médica abordou a família fez toda a diferença na doação dos órgãos do pai, que morreu aos 65 anos, em junho deste ano. Foram doados rins, córnea e pele.
“Naquele momento [da abordagem], nós sentimos um conforto muito grande em saber que poderíamos proporcionar ao nosso pai um último ato de caridade, de generosidade e de amor. Com certeza, nós sabemos que o coração dele foi em paz e foi feliz. O momento da doação de órgãos transformou o nosso luto em amor, em carinho, em solidariedade”, afirma.
Rafael Paim, presidente da Adote (Aliança Brasileira pela Doação de Órgãos e Tecidos), cita ainda outros fatores envolvidos na recusa familiar que poderiam ser evitados com políticas públicas, entre eles a demora na liberação do corpo. “A família já está passando por uma dor imensa e ainda vai ter que lidar com o atraso do funeral. A sensação é de prolongamento do sofrimento.”
Segundo ele, alguns centros de transplante fazem acordos com os familiares dando garantias de que o corpo será liberado em até 24 horas. Caso contrário, eles podem recuar no processo de doação. “Em muitos casos, o corpo já é devolvido antes, em até 17 horas.”
O medo de que o corpo do parente seja mutilado para a retirada dos órgãos também é outro motivo de recusa na doação, diz Paim. “Em geral, quando isso acontece, é porque a equipe de doação e transplante não foi treinada para explicar o processo à família. O corpo é devolvido com toda a dignidade.”
Santa Catarina, por exemplo, é considerado um dos estados modelos no treinamento das equipes de transplantes. Neste ano, foi criado um orçamento fixo que prevê, entre outras coisas, cursos periódicos sobre a detecção da morte encefálica, sensibilização dos familiares para autorização da doação, entre outros.
Na legislação atual, em casos de morte encefálica, somente a família do paciente pode atestar a vontade da pessoa em doar os órgãos. Uma das iniciativas para tentar agilizar as doações é a Aedo (Autorização Eletrônica de Doação de Órgãos), lançada em abril.
Em três meses de funcionamento, mais de 7.000 pessoas se inscreveram como doadoras. Porém, 55% delas não havia concluído o registro até julho.
Segundo Liz Rezende, juíza auxiliar da CNJ (Conselho Nacional de Justiça), um dos parceiros da iniciativa, está sendo apurado se a falta de conclusão é de responsabilidade da pessoa ou de algum problema do cartório.
Para a juíza, mesmo com esse contratempo, a iniciativa já mostra que as pessoas têm interesse na doação. “O número de pessoas querendo doar já é o triplo de doações que efetivamente foram feitas no primeiro trimestre”, diz.
Além da recusa familiar nas doações, há outros fatores que atravancam o número de transplantes no país, como a detecção da morte encefálica. A taxa no Brasil está entre 100 e 110 mortes encefálicas por milhão de população. A meta é que, em seis anos, o país atinja 77 mortes por milhão.
Segundo Valter Garcia, da ABTO, a falta de estrutura dos hospitais para atender às regras do CFM (Conselho Federal de Medicina) para a determinação de morte encefálica é um dos entraves que levam à subnotificação da morte encefálica.
Por exemplo, é preciso ter dois especialistas, com experiência e capacitação específica, e acesso a exames de imagens, como o doppler, e profissionais treinados para interpretá-los. “Em alguns lugares não há toda essa estrutura, mas estamos melhorando”, diz o médico.