O engenheiro e consultor Jerson Kelman é um dos raros especialistas do País com ampla atuação em duas áreas estratégicas de infraestrutura – nos setores elétrico e de saneamento -, tanto na iniciativa privada como na gestão pública.
Além de uma longa atividade acadêmica, Kelman foi presidente da Light e da Sabesp, e ainda registra no currículo passagens pelas agências reguladoras dos dois setores: como presidente da ANA (Agência Nacional de Águas) e como diretor-geral da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica).
Até pelo fato de ter acompanhado toda a transformação do setor elétrico brasileiro dos últimos 50 anos, Kelman traça um diagnóstico preocupante do sistema, que, segundo ele, está contaminado por intervenções de lobbies que atuam no Congresso Nacional.
“O setor elétrico, com uma matriz super renovável, paradoxalmente está em grave crise por conta das regras relacionadas a subsídios”, diz Kelman, nesta entrevista ao NeoFeed, referindo-se aos benefícios aprovados no Congresso para vários segmentos de energia – eólica, solar, térmicas a gás e a carvão, –, criando o que chama de “cercadinhos”.
Os custos desses benefícios, segundo ele, estão sendo divididos de forma desigual. Esses custos recaem sobre o mercado regulado, onde atuam as distribuidoras, que fornecem energia para os consumidores comuns que não têm painel solar no telhado. Na prática, os subsídios incidem na conta de luz, dividida entre os consumidores.
Já os painéis solares têm subsídios para gerar e transmitir energia por meio da Geração Distribuída (GD). Os benefícios acabaram criando outro modelo de negócio, as fazendas solares, usinas solares fotovoltaicas de grande porte que vendem energia, via GD, direto para o consumidor comum, que paga um valor mensal de assinatura abaixo da conta de luz, sem precisar instalar painel no telhado.
Por isso, Kelman apoia uma nova reforma do setor elétrico, cujo marco regulatório, aprovado em 2004, abriu caminho para uma modernização do sistema com a criação do mercado livre de energia, onde – diferentemente do mercado regulado – empresas ou outros grandes consumidores negociam diretamente com geradores e comercializadores.
“São tantas deformações associadas às energias incentivadas, cuja maior parte hoje está na Geração Distribuída (GD) e no mercado livre, que a solução é colocar todo mundo no mesmo lugar: o mercado livre, passando a dividir os custos entre todos”, propõe, defendendo o fim dos “cercadinhos”.
Kelman também falou sobre a conclusão da usina nuclear de Angra 3, que segundo ele não tem relação custo-benefício aceitável, e comentou sobre a desestatização da Sabesp. Ele admite que a desestatização, que sempre apoiou, não era necessária, mas foi boa.
“O que vai ser necessário na Sabesp desestatizada é mudar a cultura de uma empresa estatal para uma empresa que atua no regime privado” afirma. Leia a seguir os principais trechos da entrevista:
O Brasil tem avançado rapidamente no crescimento de energia renovável na matriz elétrica nacional. Qual sua avaliação do setor elétrico do país?
O crescimento das renováveis – solar, eólica e, já há mais tempo, biomassa e hidroeletricidade -, tanto centralizada quanto distribuída, deve ser festejado, claro. Porém, há uma grande preocupação com as questões comerciais referentes aos subsídios, que no passado eram necessários para viabilizar essas fontes renováveis e hoje não são mais. O setor elétrico, com uma matriz super renovável, paradoxalmente está em grave crise por conta das regras relacionadas a subsídios.
Como essa crise se manifesta?
As regras de alocação de custos entre consumidores e produtores estão equivocadas. Tivemos uma evolução histórica da relação entre o setor elétrico e o Congresso Nacional extremamente perversa. Os projetos de lei de transição energética no Congresso [Lei do Combustível do Futuro e Lei das Eólicas Offhsore, esta com custos extras de R$ 658 bilhões] estão desorganizando o setor elétrico. Há uma luta maluca entre defensores de uma fonte e de outra, cada um puxando a brasa para sua sardinha, buscando uma “bondade” localizada e uma “maldade” generalizada. Ou seja, privatiza-se o benefício e socializa-se o custo.
“Os lobbies buscam uma ‘bondade’ localizada e uma ‘maldade’ generalizada”
Várias entidades defendem uma reforma no sistema elétrico. Está na hora de atualizar o marco regulatório do setor?
Acredito que sim. Antes da criação do marco regulatório, em 2004, essencialmente o que se tinha era a hidroeletricidade e a termoeletricidade. Nossa carência na época era viabilizar contratos de longo prazo – os preços de curto prazo são muito voláteis no sistema hidrelétrico e termelétrico. Então, basear a expansão do sistema elétrico apenas no PLD (Preço de Liquidação das Diferenças), como chamamos o preço de mercado de curto prazo, mostrou-se inviável. Isso foi uma das razões da crise de 2001, que gerou o apagão no País e o posterior racionamento de energia.
Como o marco regulatório de 2004 ajudou a atacar esse problema?
O marco viabilizou os contratos de longo prazo, os PPAs, via leilões, nos quais os compradores compulsórios eram as distribuidoras de energia elétrica, que tinham sob abrigo todos os consumidores – o mercado livre era insignificante. Esse modelo fez todo o sentido, foi até copiado internacionalmente. Mas uma série de mudanças levou a uma situação hoje que se faz necessária uma reforma no sistema elétrico.
O que mudou?
Me refiro à introdução de fontes que não precisam de contratos de tão longo prazo, como as térmicas a carvão, à consolidação do mercado livre para consumidores de alta tensão e, principalmente, à permanência de subsídios para usuários de energia eólica e solar, além de outras novidades que foram introduzidas de forma absolutamente artificiais, como é o caso das fazendas solares. É possível perceber isso na crise de várias distribuidoras de energia. Estou pessimista. Acho que essas distorções ainda vão piorar, talvez até colapsar o sistema, antes de melhorar. Por isso, é necessária uma reforma no sistema elétrico.
O que precisa ser contemplado nessa reforma?
A situação que chegamos hoje, com a distribuição injusta, fez com que os custos do sistema recaiam sobre o mercado regulado e na conta de luz dos brasileiros. São tantas deformações associadas às energias incentivadas, cuja maior parte hoje está na Geração Distribuída (GD) e no mercado livre, que a solução é colocar o dano menor como denominador comum. Ou seja, todo mundo vai para o mercado livre, passando a ter também essas vantagens.
Isso ajudaria a pôr fim às distorções do setor elétrico?
Acredito que sim. Precisamos criar uma nova maneira de distribuir os custos sistêmicos – que são os contratos de longo prazo e das hidrelétricas, que garantem segurança ao sistema. Esses custos, hoje, estão ficando apenas com os consumidores do mercado cativo. Isso precisa ser consertado. Como existem vários “cercadinhos” – cada um defendendo seus benefícios –, a ideia é derrubar essas cercas. Se colocarmos todos num mesmo lugar, que pode ser o mercado livre, por exemplo, os custos sistêmicos não desaparecem, mas fica mais fácil dividir esses custos.
Do ponto de vista operacional, quais são os gargalos do setor elétrico?
São vários. Um deles é o “tranco” que o sistema tem de enfrentar no final da tarde – quando o sol se põe, cessa a geração solar e aumenta bruscamente o consumo –, que precisa ser atendido pelas hidrelétricas e pelas térmicas. Há, portanto, desafios técnicos e sistêmicos que são associados à energia solar e também eólica, pois os ventos nem sempre são constantes. São esses custos, gerados pela necessidade de termos sobra de capacidade de geração, que precisam ser compartilhados por todos.
A geração distribuída (GD) cresceu muito rapidamente e vai chegar em 2027 com excedente de energia renovável. Isso preocupa?
Esses mecanismos comerciais que foram criados por esses lobbies no Congresso resultaram num modelo Frankenstein. Todos sabem como funciona a relação entre a oferta e a demanda. Se você aumenta a oferta, diminui o preço. No nosso mercado isso não acontece: não é porque está surgindo nova carga que isso puxa mais oferta. Assim, o que ocorre é que o consumo do mercado cativo, dos consumidores comuns, está migrando para o mercado livre. Ou seja, o mercado como um todo não está crescendo, está apenas tornando insustentável o mercado cativo.
Por quê?
Não conheço outro país no mundo que tem esse conceito de fazenda solar: você usa o sistema de distribuição e praticamente não paga por ele. A fazenda solar oferece os benefícios ao consumidor do mercado regulado como se ele tivesse placa solar no telhado.
O modelo da fazenda solar não é sustentável economicamente para o sistema?
O engenheiro Guilherme Velho [presidente da Apine, associação dos produtores independentes de energia elétrica] tem uma conta muito interessante sobre os custos da GD, usado pelas fazendas solares. Ele mostra que, com os subsídios da geração distribuída, o custo do megawatt-hora sai por volta de R$ 600. As empresas que estão nesse negócio por meio das fazendas solares têm um preço máximo de venda igual ao da distribuidora de energia, que é, digamos, de R$ 1.000. O consumidor, em vez de R$ 1 mil, paga menos, por exemplo, R$ 850, Então, esse consumidor ganhou R$ 150. E a empresa que está oferecendo energia por assinatura, por essa minha conta aproximada, ganhou R$ 250, em cima do custo de R$ 600. É um negócio que dá uma taxa de rentabilidade absurda, comparável a do tráfico de cocaína. As empresas que investem fazendas solares não estão erradas, apenas seguem as regras do jogo.
“O negócio da fazenda solar rende uma taxa de rentabilidade absurda”
O aumento da demanda por transmissão de energia renovável do Nordeste para o resto do País está exigindo mais investimentos em linhas de transmissão. Isso também contribui para essa equação de custos?
Claro que sim, porque quando existe excesso de geração de energia renovável, eólica e solar, seria virtuoso que esse excesso se traduzisse em tarifas mais baixas locais. Isso seria ótimo para o Nordeste, que concentra as usinas solares e eólicas, para atrair indústrias cujo insumo de energia represente um custo relevante. Ajudaria a reduzir as diferenças socioeconômicas regionais.
Não é assim que ocorre?
Não. A Aneel fez um longo processo de audiências públicas visando a criar um sistema de cobrança tarifária locacional. A lógica é simples: onde há sobras de geração de energia é preciso desestimular mais geração – o que precisa ser incentivado é mais consumo. O lobby de eólica e solar no Congresso, porém, aprovou um decreto legislativo contra a resolução da Aneel, amplamente discutida e embasada em critério técnicos, para beneficiar os geradores eólicos e solares do Nordeste – não a população nordestina.
O governo federal está negociando o aumento de participação na Eletronuclear, do grupo Eletrobras, visando a construção da usina nucelar de Angra 3. Vale a pena concluir a obra e investir na matriz nuclear como fonte para o setor elétrico?
São duas questões separadas. Sobre a conclusão da obra, a conta é: consigo uma energia mais barata ou uma energia que as outras fontes não conseguem me dar? No caso de Angra 3, lamentavelmente, acho que não – salvo se alguém me provar o contrário. O gasto feito em Angra 3, R$ 7,8 bilhões, é um custo afundado. E continuar – o que significa o gasto para frente, que pode chegar a R$ 14 bilhões – não tem a relação custo-benefício aceitável.
E quanto à importância das usinas nucleares como fonte de energia limpa: é interessante para o Brasil?
Uma usina nuclear, vale lembrar, não tem a flexibilidade que tem uma usina térmica. Nesse campo, temos de aguardar porque a indústria nuclear promete, em escala mundial, os pequenos reatores, com módulos menores e produção em série. Então há perspectiva de barateamento. Mas, pelos números que tenho, o resgate do papel nuclear no Brasil não se dará por meio de Angra 3.
Você também atua no setor de saneamento, inclusive com uma passagem como presidente da Sabesp. Qual sua avaliação do processo de desestatização recém-concluído da empresa?
Sempre fui favorável. Houve críticas quanto ao preço por ação pago pela Equatorial (R$ 67), muito abaixo do que estava sendo negociado na B3 no mesmo dia (R$ 82). Então parece que o governo estadual deixou dinheiro na mesa. Mas faço dois apontamentos. O primeiro é que, dois anos antes do leilão, o preço da ação da Sabesp estava em R$ 40. Por que valorizou tanto em dois anos? Na minha interpretação, justamente por causa da expectativa de desestatização. A crítica quanto ao preço, portanto, é improcedente.
E o segundo apontamento?
Nunca entendi por que a CVM limitou a segunda fase da operação ao preço ofertado pela Equatorial, o sócio estratégico. Não deveria ter teto para a venda dos 32% das ações do governo estadual disponibilizadas. De qualquer forma, a ação está valendo hoje quase R$ 90 e o governo estadual ainda tem 18% dos papeis da Sabesp. É claro que fez um ótimo negócio.
A Sabesp é uma empresa lucrativa. A desestatização era de fato necessária?
Não era necessária, mas foi boa. Sempre dou o exemplo de muitas reuniões de diretoria que participei na Sabesp. Sempre tínhamos um dilema entre duas alternativas, A e B. Se a Sabesp fosse uma empresa privada, tomaríamos a decisão A porque tem o maior valor esperado para a companhia. Mas essa alternativa poderia eventualmente dar errado, e nesse caso, o Tribunal de Contas, o Ministério Público e todos os “analistas de videotape” iriam nos cobrar – e o meu CPF e o da diretoria estariam sob risco. Por outro lado, a alternativa B, que é menos ousada e mais medíocre sob o ponto de vista da companhia, protegia mais nosso CPF. Qual decisão deveríamos tomar? Alternativa B, sem dúvida.
Significa que a atual diretoria da Sabesp tenderia a tomar agora a decisão mais arrojada?
Exato. O quero dizer é que uma mesma equipe de dirigentes ou de técnicos trabalhando sob regras da administração privada tem produtividade maior do que trabalhando sob regras de administração pública. O que vai ser necessário na Sabesp desestatizada é mudar a cultura de uma empresa estatal para uma empresa que atua no regime privado, com mais recompensa pelo acerto e menos punição pelo erro. Porque na administração pública o acerto nunca é premiado e o erro, sempre punido.