Indústria do autismo influencia política e pressiona plano – 31/05/2024 – Equilíbrio e Saúde


Relatório produzido por pesquisadores da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e da Rede de Pesquisas em Saúde Mental de Crianças e Adolescentes aponta para a existência de um complexo industrial do autismo atuante no país que influencia políticas públicas e se expande no mercado de bens e consumo.

O termo, inspirado na obra “The Autism Industrial Complex: How Branding, Marketing, and Capital Investment Turned Autism Into Big Business” (O Complexo Industrial do Autismo: como marcas, marketing e investimento de capital transformaram o autismo em um grande negócio, em uma tradução livre), da autora Alicia Broderick, define esse complexo como um sistema que trabalha para fabricar o autismo como mercadoria, transformando-o em matéria-prima para extração de lucro.

No campo da saúde pública, o documento sugere que tem havido um direcionamento financeiro e político de recursos para a criação de clínicas exclusivas para pessoas com TEA (transtorno do espectro autista), modelo que contrapõe a política de saúde mental do SUS, que defende um cuidado com base comunitária e intersetorial. O modelo, porém, é rebatido por especialistas e ativistas da causa.

Na saúde suplementar, o relatório chama a atenção para a expansão das clínicas com destinação específica ao diagnóstico de autismo, a oferta de atendimento ultraespecializado e o impacto nos planos de saúde. Segundo dados do setor, os gastos com autismo, muitos deles amparados por decisões judiciais, já superaram os dos tratamentos de câncer.

Nos últimos meses, muitos contratos de autistas foram rescindidos, gerando queixas, investigações, ações judiciais e até proposta de criação de CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito). Nesta semana, o presidente da Câmara dos Deputados, Artur Lira (PP-AL), anunciou um acordo com as operadoras que suspende essas rescisões.

No mercado de produtos e bens de consumo, o relatório aponta uma lista extensa, que passa por polivitamínicos específicos para autistas (sem nenhuma evidência científica para tal), acessórios, eletrônicos, brinquedos e mobiliário. Muitos são produtos comuns, que poderiam ser utilizados por qualquer criança, mas quando associados ao TEA, passam a ter um outro valor de mercado.

De acordo com o relatório, o autismo também se tornou uma estratégia de marketing, onde empresas hoteleiras, atrações turísticas, prefeituras, times de futebol, entre outros, utilizam a condição e seus símbolos para se promoverem, sob o discurso da inclusão.

Segundo Maria Cristina Ventura Couto, do Instituto de Psiquiatria da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e uma das autoras do documento, a proposta é despertar uma reflexão crítica sobre esse fenômeno, que envolve diferentes dimensões, mas que estão interconectadas.

“Todos esses elementos não têm garantido um cuidado qualificado e de ampliação de acesso, não conversam com a política pública baseada na defesa de direitos, na inclusão social, no pertencimento comunitário das pessoas e na responsabilidade do Estado”, afirma.

No SUS, os serviços referenciados para o tratamento do autismo são os Capsij (Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenis) e os CERs (Centros Especializados em Reabilitação), que atendem todas as demandas de saúde mental e das deficiências, respectivamente.

Da parte de ativistas e especialistas em TEA, há muitas críticas sobre o cuidado oferecido na rede pública, como dificuldade de diagnóstico, falta de capacitação dos profissionais e uma lacuna de métodos terapêuticos específicos para o autismo.

“Temos hoje um SUS desnutrido, muitas vezes sem o devido preparo para atender pessoas autistas em serviços como Caps e CERs, e com filas que podem chegar a quatro ou oito anos por um neuropediatra”, diz a deputada estadual e ativista da causa Andréa Werner (PSB-SP).

Segundo ela, essas lacunas ajudaram a criar um gargalo que leva as pessoas a buscarem qualidade de vida por meio de um plano de saúde. “Se o SUS tivesse sido devidamente alimentado nessas décadas com as melhores práticas baseadas em ciência, talvez muitas dessas famílias não tivessem também alimentado a ‘indústria’ da saúde suplementar.”

A deputada discorda de que exista uma indústria do autismo. “Existe o capitalismo, ainda mais quando se trata de uma deficiência que atinge ao menos 1 em 36 pessoas, e, portanto, falamos de muita gente que tem necessidades específicas que não estão sendo endereçadas pelo Estado”, afirma.

Por outro lado, o relatório aponta que o TEA vem sendo mais beneficiado do que outros transtornos ou deficiências. Por exemplo, em 2023, o Ministério da Saúde destinou R$ 540 milhões em recursos para criação de 120 núcleos especializados em autismo vinculados aos CERs. No mesmo ano, os 2.700 Caps (Centros de Atenção Psicossocial) de todos os tipos receberam R$ 344 milhões.

“Há uma demanda emergente e urgente para oficinas de órteses nos CERs, para que a pessoa com deficiência possa estar incluída na sociedade, mas isso foi retirado de cena porque optou-se, por exemplo, por uma zona sensorial para atender autistas”, diz Amanda Dourado, pesquisadora, professora de terapia ocupacional na Ufscar (Universidade Federal de São Carlos) e que também assina o relatório.

Em nota, o Ministério da Saúde informa que a destinação desses recursos foi pactuada com estados e municípios e que os valores foram estimados de acordo com serviços já existentes e não se referem ao financiamento de novos centros.

Diz ainda que, além dos 360 serviços habilitados para atender pessoas com deficiência, foram direcionados recursos para a construção de 29 novos CERs com intuito de ampliar o acesso aos serviços de reabilitação pelas pessoas com deficiência, incluindo aquelas com TEA.



Pensar em serviço exclusivo para autista pode parecer uma boa ideia, mas, do ponto de vista do orçamento público, é uma catástrofe. Esse recurso vai sair da política da infância, da atenção básica, da saúde mental, da deficiência. A arquitetura tem que ser condizente com a arquitetura do SUS

No Legislativo, há uma proliferação de projetos de lei voltados para a temática do autismo. Na Câmara dos Deputados, por exemplo, existem mais de 300 propostas em tramitação. Só em 2023, foram 118, muitas dissociadas das políticas de saúde mental e que não conversam entre si.

“Há muita coisa que atende a demandas imediatistas. Em ano de eleições municipais, a questão do autismo tem se tornado uma espécie de capital político”, diz a pesquisadora Bárbara Costa Andrada, outra autora do relatório.

De acordo com Amanda Dourado, embora o autismo seja um campo muito complexo, que envolve pessoas com diferentes dificuldades e de necessidades terapêuticas, ele deve ser tratado dentro de uma política maior de saúde mental.

“Pensar em serviço exclusivo para autista pode parecer uma boa ideia, mas, do ponto de vista do orçamento público, é uma catástrofe. Esse recurso vai sair da política da infância, da atenção básica, da saúde mental, da deficiência. A arquitetura tem que ser condizente com a arquitetura do SUS.”

Para a pesquisadora Ilana Katz, que integra a rede de pesquisas em saúde mental, a capilarização dos poucos recursos da saúde mental para políticas idealizadas de atenção total só ao autismo, em uma única instituição, destitui a possibilidade de se implementar as políticas públicas já desenhadas para esse fim e que envolvem outros atores, como as escolas.

“Faz entender que o cuidado do autismo é uma questão exclusiva do campo da saúde. O cuidado precisa ser necessariamente intersetorial, o que só é feito por política pública.”

A psicóloga Cristina Dacal, gestora do Capsij na Capelo Socorro, zona sul de São Paulo, também defende que é preciso pensar no paciente com TEA para além das instituições de saúde. “A pessoa com TEA precisa que a sociedade esteja junto.”

Em 2022, o município de São Paulo adotou uma linha de cuidados para o autismo que prevê atendimentos na atenção primária à saúde, nos AMEs (Ambulatórios Médicos de Especialidades), nos CERs e nos Caps, dependendo do nível de suporte que a pessoa precisa. “A UBS é a porta de entrada, vai articular com todos os serviços”, diz Nathalia Monteiro, assessora técnica da área da saúde da pessoa com deficiência da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo.

Adriana de Oliveira, da divisão de saúde mental da secretaria, afirma que as intervenções acontecem a partir das demandas e das barreiras enfrentadas pelas pessoas com TEA. Por exemplo, se a dificuldade é de se alimentar e tomar banho sozinho, o CER vai trabalhar essas habilidades. Se o problema é a comunicação não verbal, são desenvolvidas formas de comunicação alternativa.

Já os Caps atuam dentro das dificuldades com habilidades sociais e laços familiares, explica Cristina Dacal. Para ela, é importante que o trabalho terapêutico no SUS seja pensado em conjunto com serviços e cuidados que existem naquela região e dentro do que é possível para a família. “Isso também está ligado a como essas pessoas moram, como vivem, quais os recursos e como vão alcançar o serviço de saúde.”



Fonte: Folha de São Paulo

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