Linchamento virtual no esporte – 01/06/2024 – Bruno Gualano


Dono de uma trajetória exitosa com passagens por grandes equipes europeias e pela seleção brasileira, o jogador de futebol Willian decidiu regressar, em 2021, ao clube que o revelara há 16 anos. Contava com a idolatria de uma torcida apaixonada e um contrato milionário para jogar pelo time de coração, um dos maiores do país. Bastou uma temporada para os planos ruírem.

“Os motivos da minha saída são as ameaças que sofri, principalmente minha família. As ameaças nunca pararam. Sempre que o Corinthians perdia e se às vezes eu não estava bem no jogo, minha família recebia ameaças, xingamentos nas redes sociais. Minha esposa, minhas filhas, depois de um tempo começaram também atacar meu pai, minha irmã. Sei que não são todos os torcedores, sei que é a minoria, mas ela acaba causando um impacto muito grande e um dano mental, principalmente nas minhas filhas. Emocionalmente isso afeta bastante.”

Willian sofreu de abuso cibernético. E também Cassio, Lebron James, Marta, Tom Brady e outros tantos menos estrelares. Trata-se de uma praga disseminada nas (e pelas) mídias sociais, que se caracteriza pela comunicação online agressiva, manipulativa, ameaçadora ou obscena, de modo a causar à vítima medo, perturbação emocional ou psicológica, angústia ou sentimentos de inferioridade.

Talvez por ser um fenômeno incitador de emoções primitivas, o esporte concede-se o jus singulare de regredir à barbárie. Uma criança de 8 anos é agredida por fanáticos durante uma partida de futebol? “Quem mandou frequentar o estádio do time adversário”. Família de atleta é ameaçada de morte por torcedor? “Jogador ganha muito bem para lidar com a pressão”.

Ocorre que o tradicional vale-tudo das arquibancadas transbordou o espaço físico e temporal para atingir uma dimensão descomunal nas redes sociais. Lá, onde se opera sem lei e no formato 24/7, as ofensas renovam-se e perpetuam-se a cada compartilhamento e releitura. Isso faz com que o abuso ganhe contornos de bullying cibernético, uma ameaça —da qual é difícil senão impossível— de escapar.

Para os auspiciosos que ainda se permitem adjetivar as redes como sociais, as plataformas poderiam oferecer algumas vantagens aos atletas, como a oportunidade de autopromoção e engajamento político. Mas o ímpeto pelo confronto e extremismo que marca a ação humana nessas mídias cria um ambiente propício à impetração de assédio e abuso, de que também são vítimas reiteradas as figuras do esporte. E a incivilidade não se restringe aos atletas. Treinadores, dirigentes, árbitros, jornalistas esportivos e os próprios fãs também estão na alça de mira dos linchadores virtuais.

A gravidade dos crimes online é rotineiramente atenuada sob a cínica alegação de ausência de contato físico. No entanto, a violência cibernética é capaz de produzir efeitos psicológicos e comportamentais duradouros, os quais, para além de afetar a saúde e o bem-estar do agredido, repercutem-se, por óbvio, no desempenho profissional. Não é diferente no esporte.

As canadenses Emma Kananagh e Margo Mountjoy, especialistas no assunto, propõem às organizações esportivas uma série de medidas preventivas contra a violência cibernética, a saber: chamamento às grandes empresas de mídia social para que se tornem parte da solução e ajam, efetivamente, na coibição de abusos; educação de atletas para o uso mais sadio das redes; cobrança para que o jornalismo atue de modo ético e responsável, de modo a salvaguardar a saúde mental dos profissionais do esporte; oferecimento de assistência especializada para o cuidado das vítimas; campanhas de conscientização dirigidas aos fãs sobre boas práticas nas redes e danos causados pelo abuso virtual.

Enquanto se aguarda a boa vontade parlamentar para regular as redes sociais —uma das maiores necessidades civilizatórias dos nossos tempos—, é imprescindível que o mundo esportivo se mobilize para proteger os seus, em busca de um ambiente online menos doentio. Por efeito da pujança sociocultural do esporte, quem sabe a mensagem logre ultrapassar as quatro linhas.


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Fonte: Folha de São Paulo

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