“Não sei onde fica o clitóris”, disse uma mulher de 54 anos à filha.
A jovem vinha conversando com a mãe pelo Skype sobre suas aulas do semestre, incluindo a disciplina “Sexualidade da mulher”, ministrada pela professora e autora americana Emily Nagoski.
Após a confissão da mãe, a aluna decidiu enviar a ela os slides do curso, nos quais podiam ser vistas fotos de vulvas, diagramas e ilustrações.
Esta anedota é contada pela própria Nagoski em seu livro “A revolução do prazer: Como a ciência pode levar você ao orgasmo”, um best-seller publicado em 2015 e lançado no Brasil pela editora Guarda-Chuva em 2018.
Com base em estudos científicos e nas experiências de milhares de mulheres, a autora explora a ciência da sexualidade feminina e questiona muitos dos conceitos que são tidos como certezas.
Nagoski tem doutorado em comportamentos da saúde, com especialização em sexualidade humana, e mestrado em aconselhamento educacional, ambos pela Universidade de Indiana, nos Estados Unidos.
Ela publicou em janeiro deste ano o livro “Come Together: The Science (and Art!) of Creating Lasting Sexual Connections” (“Gozando juntos: A ciência (e arte!) de criar conexões sexuais duradouras”, em tradução livre, ainda sem edição no Brasil).
Confira abaixo os principais trechos da entrevista da autora à BBC News Mundo, serviço da BBC em espanhol.
BBC News Mundo – Como educadora sexual, você diz que um dos seus objetivos é desmascarar os mitos sexuais comuns que fazem as mulheres “se sentirem inadequadas entre os lençóis”. Você pode nos contar sobre alguns desses mitos?
Emily Nagoski – Meu Deus, são tantos! Vamos abordar apenas os mitos sobre o orgasmo.
É um mito que a maioria das mulheres tenha orgasmos através da penetração: somente cerca de 25% das mulheres conseguem isso dessa forma. O restante delas, consegue às vezes, raramente ou nunca.
É um mito que atingiremos o orgasmo na primeira vez que fizermos sexo: apenas cerca de 10% das mulheres conseguem isso e a maioria é porque tocam seus próprios genitais.
É um mito que o orgasmo seja “o auge do prazer”: pode ser, mas existem muitas outras maneiras de experimentar um prazer sexual intenso. Além disso, nem todos os orgasmos são prazerosos.
Existem muitos mitos, eu poderia ficar citando-os o dia todo, literalmente.
BBC News Mundo – Existe algum mito que seja particularmente prejudicial às mulheres?
Nagoski – Um mito realmente perigoso é a ideia de que você pode dizer o que uma pessoa quer ou gosta com base no que seus órgãos genitais fazem.
A resposta genital indica simplesmente que o cérebro está percebendo algo relacionado ao sexo, mas isso não significa que a pessoa queira ou goste do que está acontecendo.
É chamado de “incompatibilidade de excitação”. Eu dei uma palestra no TEDTalks sobre isso.
BBC News Mundo – Temos medido e avaliado nossas experiências sexuais da maneira errada? Supervalorizamos o orgasmo como objetivo principal de uma experiência sexual? Como mulheres, estamos colocando muita pressão em ter orgasmos?
Nagoski – Os orgasmos só importam na medida em que você decide que eles são importantes. Se eles são muito importantes para você, ótimo. Se não forem, ótimo também.
Se você se preocupa com eles, recomendo saber que tipo de estímulo e em que tipo de contexto você sente maior prazer.
Caso não sejam importantes, sugiro potencializar a comunicação com seu parceiro, para que ele saiba que essa não é sua prioridade e que você prefere vivenciar o prazer sexual de outras formas.
Comunique-se com confiança e alegria; é o seu corpo e a sua sexualidade, você decide como e quando será tocado.
BBC News Mundo – Você diz que não se trata de orgasmos, de quantos temos, da frequência com que fazemos sexo ou do desejo de fazê-lo, mas sim do prazer. “O prazer é a medida”, “o prazer é o que importa”. Por quê?
Nagoski – Por um lado, digo que “o prazer é a medida” do bem-estar sexual, porque é isso que as pesquisas indicam.
Quando os cientistas conversam com pessoas que se identificam como tendo relações sexuais extraordinárias, essas pessoas não falam sobre desejo ou orgasmos, falam sobre autenticidade, vulnerabilidade, empatia e prazer.
Se quisermos ser como as pessoas que fazem o tipo de sexo que muitos de nós invejaríamos, colocaremos o prazer no centro e deixaremos o desejo, o orgasmo e o resto cuidarem de si mesmos.
Por outro lado, focar no prazer é uma maneira infalível de garantir que você desfrutará de todos os aspectos do sexo que pratica.
Às vezes o desejo nos faz sentir bem, mas outras vezes é doloroso, fonte de frustração e angústia. O prazer, por definição, não é.
Quero viver em um mundo onde a gente só faça o sexo que gostamos e não se sinta mal por não fazer o sexo que não gostamos.
Acho que essa é a parte difícil.
BBC News Mundo – Você diz que “é o lugar certo, da maneira certa, pela pessoa certa, na hora certa, nas circunstâncias externas certas e no estado interno certo”. Qual é o papel do “contexto certo” quando pensamos nas nossas experiências sexuais?
Nagoski – O prazer é mais complexo e sutil do que a maioria de nós foi levada a acreditar.
Neurologicamente, existe em pequenos “bolsões hedonistas”, que são ajustados para serem mais ou menos sensíveis ao prazer, dependendo do estado do cérebro.
Quando o cérebro está estressado, os centros de prazer estão sintonizados para interpretar quase qualquer sensação como uma ameaça potencial, mesmo aquelas que em um contexto diferente poderiam ter sido interpretadas como algo a ser explorado com curiosidade.
É quando o cérebro está num estado de curiosidade, segurança e/ou diversão que esses centros de prazer se sintonizam para interpretar quase qualquer sensação como prazerosa.
A importância neurológica do contexto é a razão pela qual às vezes fazer cócegas é bom. Se você está se sentindo brincalhona, animada e conectada a um parceiro atraente e confiável, as cócegas dele podem fazer você se sentir bem.
Mas e se o mesmo parceiro por quem você se sentiu atraída fizesse cócegas em você quando você estivesse no meio de uma discussão? Seria bem irritante.
É a mesma sensação, é até o mesmo parceiro, mas é um estado interno diferente, então seu cérebro interpreta de forma completamente diferente.
Esse é o poder do contexto.
BBC News Mundo – Quando pensamos em sexo, temos a ideia de sensações, hormônios, emoções, partes muito específicas do nosso corpo e talvez nos esqueçamos do chefe supremo: o cérebro. Você diz que “o sexo é muito mais um processo cerebral do que um processo genital” e que os orgasmos são “orquestrados principalmente pelo cérebro, não pelos órgãos genitais”. Por que é importante ter isso em mente?
Nagoski – Hoje em dia, quando os cientistas querem estudar o orgasmo, fazem tomografias cerebrais, porque o orgasmo é uma função cerebral, ao contrário da ejaculação, que é um reflexo espinhal.
O que você listou: sensações, hormônios, emoções e até partes do corpo são funções cerebrais no todo ou pelo menos em parte.
As sensações são percebidas no cérebro, as emoções são um produto do cérebro, os hormônios influenciam o cérebro e o cérebro possui múltiplos mapas de todo o corpo, um mapa para perceber as sensações e um mapa para organizar as funções motoras.
Seu corpo não sente algo sem que seu cérebro esteja envolvido, você não tem fantasias, nem conexão emocional.
Quando as pessoas têm dificuldade em atingir o orgasmo, é quase sempre porque há algo no contexto, isto é, nas circunstâncias externas e no estado interno, que “pisa no freio” no cérebro.
BBC News Mundo – Falando em cérebro, em uma de suas falas no TedTalks você sugere um exercício ao público: ficar diante de um espelho o mais nu possível e escrever tudo o que gostamos naquilo que vemos. E você acrescenta: “É claro que primeiro seu cérebro será inundado com mensagens culturalmente construídas sobre como seu corpo não atende ao ideal que foi culturalmente elaborado”. Como essa ideia do corpo desejável afeta nossa sexualidade?
Nagoski – A pesquisa é muito consistente nisso: a imagem corporal impacta o funcionamento sexual.
A autocrítica corporal está associada a todas as formas pelas quais podemos vivenciar problemas com a sexualidade, desde o prazer até a excitação, o desejo e o orgasmo.
Para perceber prazer em seu corpo, você deve concentrar sua atenção nele. E se isso desencadear todos os tipos de autocrítica, isso irá desacelerar ou até mesmo interromper a sua resposta sexual.
Mas se, ao direcionarmos a atenção para o nosso corpo, sentirmos apenas autoaceitação e até orgulho, isso pode ativar o acelerador sexual no nosso cérebro.
BBC News Mundo – Você ressalta que muitos de nós, inclusive você, crescemos acreditando em uma “narrativa desatualizada sobre como o desejo funciona (…) que não é apenas incorreta, mas também equivocada”. Por exemplo, a ideia de “manter viva a centelha, a paixão”, em relacionamentos de longo prazo é uma forma de simplificar demais o sexo e a evolução. Por quê?
Nagoski – O “porquê” de como isso simplifica demais a ciência evolutiva poderia ocupar um livro inteiro, mas basicamente a ideia de que o sexo deveria ser sobre estar excitado e no clima de “mal posso esperar para colocar minha língua na sua boca”, parte da concepção de que a experiência divertida de se apaixonar é e deve ser a mesma de estar apaixonado.
Quando duas pessoas começam a se conhecer e se apaixonar, elas passam muito tempo juntas fazendo coisas sensuais, às vezes até em detrimento de outras coisas em suas vidas.
Mas, quando já estão apaixonados e têm um relacionamento estabelecido, passam o tempo juntos vivendo suas vidas normais.
Isso não é um problema, é inevitável, e para as pessoas que desejam uma ligação sexual de longo prazo com uma pessoa com quem também partilham uma casa e até filhos, esse é precisamente o ponto!
Sua conexão sexual pode ser um adorável aprimoramento disso, uma fonte de prazer que contribui para a qualidade de sua vida juntos.
Não que haja algo de errado em querer e criar “faísca”.
Compartilhar o prazer sexual faz parte de como expresso o amor, por isso farei questão de reservar tempo, energia e atenção suficientes para poder compartilhar momentos sensuais com aquela pessoa especial.
É assim que fazem os casais que mantêm uma forte conexão sexual de longo prazo.
Fui sábia o suficiente para aprender com o exemplo deles, e as coisas estão melhores agora em meu relacionamento do que têm sido nos 13 anos em que estamos juntos.
BBC News Mundo – Naquela narrativa muito difundida de que depois dos 50 anos “aparentemente todos os hormônios que já tivemos flutuam num mar de envelhecimento e ficamos assexuados e castrados”, sua ideia de centralidade do prazer ganha ainda mais importância. A perimenopausa e a menopausa trazem seus próprios desafios para muitas mulheres. Como aproveitar nossa sexualidade nessas fases?
Nagoski – A ideia de que as alterações hormonais associadas ao envelhecimento normal significam que nossa sexualidade está condenada faz parte do mito do “desejo imperativo”.
Acontece que não há impacto direto dos hormônios sexuais no funcionamento sexual, incluindo o desejo e o prazer sexual, com uma exceção: com níveis mais baixos de estrogênio, o tecido genital pode tornar-se mais frágil, o que causará dor.
A lubrificação é absolutamente essencial, mas se sentir dor durante o contato genital, converse com um profissional de saúde sobre cremes de estrogênio, que podem ajudar a restaurar esses tecidos.
São principalmente as mudanças na vida que acompanham o envelhecimento que podem afetar o nosso funcionamento sexual, incluindo a forma como nos sentimos em relação às mudanças do nosso corpo, à nossa sexualidade e aos nossos relacionamentos.
Nesta fase ocorre uma revolução nas mentes de muitas mulheres.
Elas reconhecem que todas as regras que têm seguido sobre quem elas “deveriam” ser como pessoas sexuais, como seu relacionamento sexual “deveria” funcionar, simplesmente não se aplicam a elas.
E elas começam a explorar seu eu sexual autêntico e o de seus parceiros, e colaboram para criar contextos que facilitam a experiência de prazer em seus cérebros.
Quando nos libertamos da cultura de pureza e das normas de gênero, libertamos partes da nossa sexualidade que pensávamos que devíamos esconder. E expandimos nosso acesso ao prazer sexual.