Nunca achei que fosse beber pela manhã, até que se tornou uma rotina – 26/08/2024 – Vida de Alcoólatra


Eu sabia que meu consumo de bebida não era normal, mas nunca achei que fosse beber pela manhã. Tinha pavor dessa ideia, no entanto isso acabou acontecendo e foi se incorporando à rotina. É uma barra, mas chega um momento no alcoolismo ativo que a hora de beber é o que menos importa. Basta se entorpecer.

Lembro de algumas vezes que fiz uso do álcool pela manhã para recreação, quando ele ainda não era um problema na minha vida. Lembro de uma manhã, por exemplo, eu ainda estava na faculdade, que o o professor da segunda aula tinha faltado e então meus amigos decidiram ir para um bar. Eram apenas onze horas e eu fui junto. Claro que bebi. Aquilo não parecia nada tão errado assim. Afinal, era quase meio-dia. Para quem tinha levantado às sete…

Aquele dia foi legal, eu estava enturmada com os colegas e tomei algumas cervejas. Fiquei altinha, até mais extrovertida, nisso o álcool sempre foi eficaz para mim. A bebida ainda não tinha se manifestado como um mal.

Também teve aquela outra vez que eu estava viajando e no café da manhã do hotel serviram uma bebida comemorativa, um agrado, digamos. Eu estava passeando. Que mal havia em aceitar? Naquela ocasião, o horário não iria comprometer nenhum compromisso de trabalho. Eu estava de férias! Às nove horas eu ganhava um alegrete para continuar o dia, qual o problema?

Nessas duas vezes, no entanto, eu segui meu dia com o que veio pela frente. Houve outras. Não fiquei só na bebida. O dia começou e aconteceu de eu me deparar com um trago pela manhã. Bem, normal não era, mas pelo menos o dia ainda não se pautava por um copo atrás do outro. Depois do brinde matinal, o resto do dia estava livre do álcool.

Muitos anos depois, a coisa mudou. O alcoolismo já estava bem avançado. Eu morava num apartamento térreo e saía para comprar bebida toda manhã. É claro que não queria que os vizinhos soubessem, eu não queria dar bandeira. Então era um desafio. Voltar para casa, especialmente quando a moça da faxina estava no prédio, era complicado. Era um malabarismo. Eu tentava abafar o barulho das garrafas batendo umas nas outras, mas não conseguia. Achava que enganava, mas não.

Da portaria até entrar em casa era uma aventura desastrosa. Fora a minha cara pedindo bebida alcoólica às sete da manhã, quando as pessoas pediam pão quente e uma média. Isso era um horror, mas eu só vislumbrava o meu entorpecimento.

Vez ou outra o padeiro me dizia que rezava muito por mim. “Eu peço por sua saúde todas as noites, Alice. Você é muito triste”. A bebida me fazia triste. E eu achava o contrário, que ficava parecendo alegre.

Lembrar disso me dá um aperto no coração. Outro dia encontrei uma moça que fazia faxina num prédio onde trabalhei. Ela olhou para mim e me abraçou. Tenho a impressão de que notou uma mudança na minha expressão e manifestou seu alívio.

Deixei rastros de tristeza e hoje, em sobriedade —sei que essa construção, “em sobriedade”, pode soar estranha, mas é um jargão do pessoal do AA que incorporei—, carrego a alegria que conquistei ao parar de beber. Viver não é fácil, existem desafios, e como!, mas é muito mais fácil viver enfrentando a vida de cara limpa.

Pela manhã gosto do gosto de café, como já disse. Aliás, outro dia até ganhei um pó de café de uma leitora. Degustei como quem recebe o melhor presente da vida. Viver é simples, mas pode ficar complicado para as pessoas que, como eu, demoram a encontrar a causa do sofrimento.

No meu caso, o alcoolismo me prejudicou demais, me fez trocar o doce sabor de um café da manhã pelo acre gosto do álcool. Hoje eu sei que a vale muito a pena trocar aquela vida de entorpecimento por outra, de enfrentamento. Há esperança. Se deu certo para mim, dá certo para qualquer um. Basta abrir a mente e olhar o horizonte e as possibilidades de cura.


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Fonte: Folha de São Paulo

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