Quando foi lançado em maio de 2023, o Pacto Contra a Fome veio com o slogan Com fome não dá. O foco da coalizão suprapartidária e multissetorial era o prato vazio — o drama de milhões de vivem algum grau de insegurança alimentar e nutricional. Agora, o movimento faz de 2024 o ano do combate ao desperdício de alimentos: Lugar de comida é no prato — que continua vazio.
Anunciada com exclusividade pelo NeoFeed, a nova campanha será veiculada a partir de hoje, 4 de setembro, no rádio e na televisão, além da divulgação de um guia sobre o tema. O filme que acompanha a campanha foi feito em parceria com a Africa Creative.
Como diz a música da peça, escrita por Jair Oliveira, da S de Samba: “Comida boa é na boca, na boca que come e não na boca do lixo”. A meta é um Brasil sem fome até 2030 e todos os brasileiros bem alimentados em 2040.
Do jeito que está, é impossível continuar. Das 161 milhões de toneladas de alimentos produzidas no país, todos os anos, 55,4 milhões de toneladas têm o lixo como destino. O que é posto fora equivale a oito vezes a quantidade necessária para alimentar quem tem fome.
Atualmente, 8,7 milhões de brasileiros não têm o que comer, nem sabem quando farão a próxima refeição. Considerados os outros dois níveis de insegurança alimentar, o moderado e o leve, o número de afetados sobe para 64 milhões de pessoas.
Um contrassenso absurdo e cruel, o desperdício mina os sistemas agroalimentares e aprofunda as desigualdades. O desperdício potencializa a fome.
Com o descarte de comida, os recursos usados para a sua produção, como água, terra, energia, força de trabalho e dinheiro, também se perdem. Um terço das terras agrícolas globais são usadas para cultivar alimentos que jamais serão consumidos.
E, enquanto apodrece nos aterros sanitários, essa montanha de comida é responsável pela emissão de 8% a 10% dos gases de efeito estufa lançados na atmosfera, ano a ano, no mundo todo. Sofrem as pessoas e o planeta, em um círculo vicioso de degradação e miséria.
Desde o lançamento do Pacto, a economista e empresária Geyze Diniz, cofundadora e presidente do conselho do grupo, insiste:
“Não queremos inventar a roda. Mas, sim, dar visibilidade e potencializar soluções já existentes, criando pontes e promovendo sinergias entre poder público, a inciativa privada, a academia, as organizações não governamentais e a sociedade civil”.
Uma das ações contra o desperdício mais recentes é a parceria com o Ministério de Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar para mapear os benchmarks das Ceasas. “Muito alimento é jogado fora todos os dias nas Ceasas. E são os alimentos mais nutritivos”, diz Geyze, em conversa com o NeoFeed.
Apesar de seu pouco tempo de história, o Pacto tem mostrado a que veio. Uma das conquistas mais emblemáticas foi a participação do movimento na elaboração da nova cesta básica nacional.
Criada em 1938, pelo então presidente Getúlio Vargas (1882-1954), a lista original estava em dissonância com os últimos 82 anos de avanços nos conhecimentos da ciência da nutrição. A nova é mais saudável, está mais rica nutricionalmente e prioriza a regionalidade dos alimentos.
“Essa foi nossa primeira incidência em uma política pública que culminou em uma conquista histórica para o país”, orgulha-se a economista.
A adequação da cesta básica às necessidades de uma população em crescimento exponencial sob risco da insegurança alimentar, é, sem dúvida, a realização mais vistosa do Pacto, mas não a única.
Ao longo do último ano, o movimento atraiu investimentos e novos parceiros se juntaram aos 40 fundadores da iniciativa. Entre eles, estão Vale, Grupo Carrefour, Arezzo & Co, B3, LCM Partners e, agora, o NeoFeed, que criou a editoria “Fome de Urgência” para conscientizar mais pessoas e empresas sobre os problemas causados pela fome e as soluções que existem mundo afora.
Os avanços deram ao Pacto projeção e reconhecimento. A coalizão foi convidada para participar do Grupo de Trabalho de Combate à Fome do governo federal e de duas frentes sobre o tema do G20.
A ONG inglesa Wrap, focada no desperdício de alimentos, propôs que a iniciativa se candidatasse a seu programa de investimentos.
Aos 52 anos, a economista comemora as conquistas alcançadas até agora, sabe que há ainda um longo caminho a percorrer, mas está convicta de que, se cada um fizer a sua parte, o Brasil vence a fome.
Veja a seguir, os principais trechos da entrevista de Geyze ao NeoFeed.
Se o Brasil desperdiça comida mais do que o suficiente para alimentar quem tem fome, por que ainda há tanta gente sem ter o que comer?
A gente tem o recurso, a gente tem o alimento. Temos ouvido muita coerência dos vários atores engajados com o problema da fome. Por que então não resolvemos essa questão? Porque a gente tem de ter políticas públicas bem feitas. A gente não pode ter desmonte toda vez que o governo muda. A fome tem de ser política de Estado, não de governo. E, para que isso aconteça, a sociedade civil e as empresas são fundamentais. Eu entendo que as empresas precisam de foco de atuação, muitas vezes no setor ou na região onde estão instaladas, mas a gente está falando de algo a mais.
O que significa esse “algo a mais”?
Um algo a mais naquele nosso lugar de cidadão, um algo a mais da empresa que está nesse país e que tem o funcionário que, às vezes, está em insegurança alimentar. As empresas precisam lidar com a questão da renda digna. Tem muita corresponsabilidade aqui. São as empresas e o governo, mas também as pessoas, as famílias…
Ao longo do último ano, você notou algum aumento na consciência sobre a urgência do combate à fome?
Hoje, eu estou convicta de que a fome é um problema de todo mundo — e não só do governo. O governo tem o tiro de canhão, mas sozinho não resolverá o problema. A sociedade civil precisa atuar. As empresas precisam entender que investir em um país sem fome é investir em produtividade. Cerca de 75% do capital filantrópico das empresas vai para a educação e a saúde. Mas como educar uma criança com fome? O preço que nós todos pagamos por não atuar é muito alto. Qualquer custo de prevenção é menor do que o custo de tratamento. Com a fome, não é diferente.
Qual é então a grande dificuldade?
A gente ainda esbarra muito na justificativa “essa não é minha causa”. Então quando vai ser? Acho maravilhoso que as empresas invistam em educação e saúde, mas a gente precisa de mudanças estruturantes. O texto da cesta básica que conseguimos aprovar vai pautar, por exemplo, a merenda escolar e o pequeno produtor. É diferente de dar R$ 1 mil, comprar dez cestas básicas para alimentar dez famílias por um mês e pronto. As soluções sistêmicas passam por várias frentes. E eu não tenho dúvida de que é possível sair do mapa da fome de forma estruturante.
“Se cada um de nós olhar para o problema, a gente voa”
Mesmo sem grandes investimentos privados, em 2023, quase 24,5 milhões de brasileiros saíram do patamar mais grave de insegurança alimentar e nutricional.
Atualmente, no Brasil, o nível de desemprego está mais baixo e houve uma injeção muito alta de renda pelo Bolsa Família. Mas isso não é sustentável a longo prazo. O governo não pode ficar fazendo isso por muitos anos. E a renda é um dos principais fatores, mas não o único.
Quais são os outros?
A gente precisa olhar para as políticas públicas, para as questões de legislação, de tributação, de logística, de tecnologia… Em vez de concentrar nossos esforços em fazer captação, em mostrar para os empresários o quanto é importante acabar com a fome, nós poderíamos estar gastando nosso tempo e energia nas questões de estratégia e de políticas públicas, por exemplo. Se cada um de nós olhar para o problema, a gente voa. E, se isso acontecer, arrisco dizer que acabaremos com a fome antes de 2030.
Desde o lançamento do Pacto Contra a Fome, você insiste na importância dos dados e evidências. Quais são os avanços nessa área?
A gente está trabalhando muito com o governo federal. É importante mostrar que podemos agilizar a coleta de informações e os estudos. Fizemos parceria com os governos do Maranhão e do Pará para descobrir por que apenas 13% dos municípios brasileiros adotam o Sisan [Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional]. Esse diagnóstico vai trazer informações para o próprio governo. O Sisan foi lançado na mesma época do SUS. Por que o SUS é um case internacional de sucesso e o Sisan, não?
No trabalho de pesquisa para a campanha Lugar de comida é no prato, o Pacto identificou alguma iniciativa de sucesso no Brasil?
Curitiba tem um programa brilhante. Em uma parceria entre a Polícia Penal do Paraná e as Ceasas, os apenados, que têm o benefício da tornozeleira eletrônica, trabalham na coleta, processamento e transporte dos produtos que não podem ir para o mercado — ou porque estão um pouco passados ou amassados, por exemplo. Uma parte desses alimentos vai in natura para cerca de 300 ONGs. Outra parte é encaminhada para as cozinhas instaladas nas próprias Ceasas. Lá, os alimentos são transformados em doces, sucos e polpa de frutas, que, depois de embalados e congelados, são distribuídos para asilos e creches. Uma terceira parte dos produtos, imprópria para consumo humano, é destinada a instituições que cuidam de animais. O que não dá nem para os animais, vira energia. É um projeto lindo, uma prova de que tudo é uma questão de consciência e boa vontade.
Vocês estão com uma parceria com o governo do Ceará. Pode explicar como funciona?
Nós ranqueamos todos os estados do Brasil pelo nível de fome. E o Ceará é um dos dez estados que mais tem fome. Como o governo estadual já havia lançado os programas Ceará Sem Fome e Mais Nutrição, resolvemos olhar mais detidamente para esse estado. No momento estamos fazendo captação para ficar dois anos lá. Queremos abrir projetos que possam ser financiados por empresas, famílias ou fundações. Esse pode ser um modelo altamente replicável pelo Brasil.