Só para constar, eu já ia sentar para escrever esta coluna sobre prata e bronze quando o zap da minha família fez o telefone vibrar com o spoiler: Rebeca Andrade levou o ouro olímpico no solo. Sem problemas. Spoiler desse calibre é muito bem-vindo, e assim minha segunda-feira começou com a tarefa árdua de ligar a tevê para me inteirar sobre os acontecimentos.
As duas Olimpíadas, de verão e de inverno, são eventos que eu adoro acompanhar pela explosão de habilidades fenomenais. Os danados dos gregos tinham razão lá na Antiguidade e a humanidade fez bem em instituir a versão moderna das Olimpíadas para celebrar, em um evento só seu, o que a persistência humana é capaz de alcançar. É inspirador descobrir do que a nossa espécie é capaz.
Claro que sempre tem um bocó de poltrona para desmerecer o brilho alheio, dizendo que é tudo “desvantagem injusta” devido à biologia que favorece os outros, menos o indivíduo na poltrona, que não se levanta para fazer o mesmo porque, pobrezinho, seus genes não ajudam. Nada disso.
A biologia que deu tronco, braços, pernas e um cérebro para integrar tudo a Rebeca Andrade e a todos esses esportistas que brilham em nossas telas não serviria de nada se não fossem as dezenas de milhares de horas de treino, sem as quais capacidades biológicas não se transformam em habilidades. O processo envolve inclusive a modificação da própria biologia conforme o uso, numa via auto-organizada de mão dupla.
É assim que todas as habilidades humanas se desenvolvem. A base necessariamente é a capacidade biológica, de fato: os circuitos que permitem ao cérebro controlar o corpo, notar o novo estado, registrar ação e resultado como causa e consequência e gostar da combinação. Mas, daí em diante, o que acontece é resultado de repetição, repetição, repetição, que permite ao cerebelo começar a antecipar as consequências das ações do cérebro antes mesmo de ele mover um dedo.
É graças à prática que os circuitos do cerebelo têm a oportunidade de, por tentativa e erro, esculpir a si mesmos na forma de modelos internos que dirigem ações cujos resultados sensoriais escapam cada vez menos ao esperado. Só assim se fica de pé: se o cérebro esperasse o resultado de cada passo antes de dar o próximo, não duraríamos mais na vertical do que uma batata sobre dois palitos. Ficamos em pé porque o cerebelo aprendeu a antecipar as ações que mantêm o corpo estável.
Os saltos mortais “apenas” levam o processo ao extremo, mas só se chega a esse extremo de dar pulos, cambalhotas e piruetas e depois cair de volta de pé com muita, muita, muita oportunidade para tentativa e erro –e muita, muita, muita garra para cair e depois levantar e continuar tentando.
Por isso o cérebro da Rebeca é um assombro, merecedor das reverências de Simone Biles e Jordan Chiles no pódio (e das minhas lágrimas, sem pudor algum). Pouquíssimos de nós temos vontade e garra a ponto de dedicar os milhares de horas que preparam o corpo e o cérebro para o desempenho fenomenal. Simone e Jordan entendem perfeitamente.
Nada disso acontece, contudo, se não houver oportunidade primeiro. Que a glória merecidamente alcançada pela Rebeca apesar de todas as dificuldades no caminho traga não só inspiração como também mais oportunidades para os cerebelos de crianças brasileiras.
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