O que o primeiro “santo millennial” diz sobre as ambições da Igreja no mundo digital

O que o primeiro “santo millennial” diz sobre as ambições da Igreja no mundo digital


Os santos do futuro são (quase) gente como a gente. Usam calça jeans, tênis e camiseta. Praticam esportes, vão ao cinema e ao teatro. Divertem-se com os amigos e sonham em desbravar o mundo. Antenados com as inovações do século 21, navegam nas redes sociais, jogam videogame, ouvem música e assistem filmes nas plataformas de streaming.

Desde o pontificado de João Paulo II (1920-2005), a Igreja católica tenta aproximar o conceito de santidade das pessoas comuns — normalmente compreendida como algo distante e representada por figuras quase irreais, sempre muto virtuosas, muito puras e muito piedosas.

Quem agora tem a oportunidade de modernizar o divino é o papa Francisco. E ele o fará, em abril de 2025, durante o Jubileu dos Adolescentes, ao promulgar Carlo Acutis santo. O primeiro santo millennial, já anunciado como o padroeiro da internet, influencer de Deus e ciberapóstolo.

Morto em 2006, aos 15 anos, o jovem ilustra à perfeição o que o sumo pontífice define como “santo da porta ao lado”. Há um ano, ao rezar o Angelus, na Solenidade de Todos os Santos, Francisco disse: “Se pensarmos bem, certamente já conhecemos alguns deles, alguns santos quotidianos: algumas pessoas justas, que praticam a vida cristã com seriedade, com simplicidade… essas que eu gosto de chamar de ‘os santos da porta ao lado’, que vivem normalmente”.

“E Carlo era um menino comum, como qualquer outro”, lembra o escritor e especialista em direito canônico José Luis Lira, professor da Universidade Estadual do Vale do Acaraú, no Ceará, em conversa com o NeoFeed,

Filho de pais italianos, o garoto nasceu em Londres, em 3 de maio de 1991, mas ainda bebê foi viver com a família em Milão. Carlo gostava de viajar e videogame. De creme de avelã e chocolate com sorvete. De futebol e Pelé. Alegre, fazia rir os parentes, os amigos e os professores. Nativo digital, aos 10 anos, aprendeu a programar.

Carlo era uma adolescente comum, mas com profunda compaixão e dedicação à fé. Dava atenção especial aos pobres e idosos. Um de suas primeiras economias, por exemplo, usou para comprar um saco de dormir para um morador de rua, com quem sempre cruzava a caminho da missa. Usou suas habilidades tecnológicas para propagar as lições dos evangelhos. Aos 11 anos, criou o site The Eucharistic Miracles, uma espécie de catálogo dos milagres eucarísticos.

“Ele se esforçou para ser a melhor versão de si mesmo, vivendo o comum de uma forma extraordinária”, lê-se no perfil do adolescente, no site do Vaticano.

E é isso, a combinação entre o comum e o extraordinário, que faz os santos contemporâneos, diz o professor Lira.

No verão de 2006, porém, um quadro persistente de gripe se revelou uma das formas mais agressivas de leucemia. “Estou destinado a morrer”, anunciou o adolescente, em vídeo, logo depois da notícia da doença. Sua saúde deteriorou rapidamente e, em 12 de outubro, ele sucumbiu ao câncer.

Devoto de São Francisco de Assis, pediu para ser sepultado na cidade do santo padroeiro dos animais.

Milagre brasileiro

Graças às técnicas mais modernas de tanatopraxia, desde 2020, seu corpo está exposto na igreja Santa Maria Maggiore, em Assis.

Agasalho de moletom, calça jeans e tênis Nike, o menino morto atrai uma legião cada vez maior de devotos;  gente vinda de todo o canto do planeta. Há relíquias do adolescente espalhadas por todo o mundo — inclusive, no Brasil. Carlo já é um fenômeno global.

“Sua história é comercializada por meio da mídia que a nova geração usa, especialmente TikTok, Instagram e YouTube. Suas biografias assumem a forma de histórias em quadrinhos ou romances para jovens adultos. Biografias com títulos como Saint in Sneakers e God’s Computer Genius misturam narrativas de sua santidade com discussões sobre seu amor por Nutella e sua luta contra o peso (…) busca de informações no Google e sua paixão por videogames Pokémon e Halo”, diz Michael A. Di Giovine, professor de antropologia, da Universidade de West Chester da Pensilvânia, nos Estados Unidos, em artigo para a plataforma The Conversation, intitulado Italian teenager Carlo Acutis’ upcoming canonization reflects the Vatican’s desire to appeal to a new generation of Catholics.

A santidade do adolescente é contada em vídeos nas redes sociais e em histórias em quadrinhos (Foto: watch.formed.org)

Desde muito cedo, o menino demonstrou devoção às questões de fé (Foto: Instagram @carloacutis)

Alegre, o adolescente gostava de viagens, videogame, futebol e creme de avelã com chocolate e sorvete (Foto: Instagram @carloacutis)

Um dos dois milagres de Carlo, exigidos pela Igreja, para tornar alguém santo, é brasileiro (Foto: YouTube)

Aos 11 anos, o garoto criou um site, onde catalogava os milagres eucarísticos reconhecidos pela Igreja (Foto: miracolieucaristici.org)

Carlo Acutis morreu em 2006, aos 15 anos, vítima de leucemia (Foto: YouTube)

Para alguém se tornar santo, a Igreja exige a comprovação, por médicos e cientistas do Vaticano, de dois milagres. O primeiro torna o indivíduo beato, o que acontece, no caso de Carlo, em outubro de 2020, no Brasil.

Por causa de uma anomalia congênita no pâncreas, um adolescente de Campo Grande vomitava todo o alimento que ingeria. Desenganado, o menino foi levado pelo avô à Igreja de Nossa Senhora Aparecida, na cidade, que o fez o neto tocar uma roupa de Carlo — a veste havia sido enviada, para o Mato Grosso do Sul, alguns anos antes, por sua mãe Antonia Salazano. Avô e neto rezaram pelo garoto inglês. E, por causa disso, o brasileiro teria se curado.

O outro milagre atribuído a Carlo foi reconhecido em maio passado. Ao cair da bicicleta e bater a cabeça, uma jovem de Costa Rica teria entrado em coma. A equipe responsável pelos cuidados da moça foi taxativa: o quadro era irreversível. Depois de sua família ter rezado para Carlo, no entanto, ela voltou, sem nenhuma sequela.

Em busca de uma nova geração de fiéis

A canonização do adolescente acontece em um momento em que os mais jovens se afastam da Igreja e sinaliza a busca do Vaticano por atrair uma nova geração de católicos, mais moderna, cosmopolita e ligada ao universo digital.

Ser um santo da nossa época identifica e aproxima Carlos dos fiéis. Um exemplo para o qual a Igreja pode apontar e dizer: “O cara que vocês deveriam seguir é um cara muito parecido com vocês”, afirma o padre Will Conquer, missionário no Camboja e autor de um livro o caminho do jovem para a santidade, em reportagem do jornal The New York Times.

Um “cara” que usa as mídias sociais, segundo o Vaticano, de maneira notável.

Escrevendo para os jovens, em 2019, Francisco afirmou: “Via que muitos jovens, embora parecessem diferentes, na verdade acabavam sendo iguais aos outros (…) não deixam brotar os dons que o Senhor nos deu, não oferecem a este mundo essas capacidades tão pessoais e únicas que Deus semeou em cada um”. Terminou citando uma frase de Carlo: “Todos nascem como originais, mas muitos morrem como fotocópias”, arrematando com um “não deixe que isso aconteça com você”.

O novo santo “se alinha à abordagem contínua da Igreja às questões relacionadas à IA, ciência e tecnologia, que o papa insiste que devem ser usadas a serviço da dignidade e do desenvolvimento humanos”, escreve Liam Temple, membro capuchino em história do catolicismo, da Universidade Durham, na Inglaterra, em Carlo Acutis: what the first ‘millennial saint’ says about the Catholic church’s future, também para o site The Conversation.

Tem mais. No rol dos santos católicos, Carlo é um dos raros que fez uso da tecnologia da qual é apontado como padroeiro — o que reforça ainda mais a ideia de sintonia entre ele e os devotos de sua época.

Normalmente, essas associações não têm base histórica direta e costumam refletir interpretações culturais.

Santa Clara de Assis, por exemplo. A freira da Idade Média é considerada patrona da televisão porque, doente, sem poder ir à missa, por obra divina, teria visto a celebração do rito projetada na parede de seu quarto. Ou São Gabriel Arcanjo, protetor das telecomunicações. Tido como mensageiro de Deus, na mitologia bíblica, é ele quem avisa Maria sobre a chegada de Jesus.

E São José de Cupertino, que, por causa de suas experiências de levitação, no século 17, virou padroeiro da aviação e das viagens espaciais? Nenhum deles poderia estar na porta ao lado. Diferente de Carlo.





Fonte: NeoFeed

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