É, no mínimo, um desperdício que o Brasil, terra de tantos escritores e poetas celebrados, tenha uma população tão pouco dada ao hábito da leitura. Pelos mais diversos motivos, da falta de dinheiro à falta de costume, 84% dos brasileiros com mais de 18 anos não compraram um único livro sequer em 2023, revela pesquisa da Câmara Brasileira do Livro (CBL).
A boa nova é que o País conta com iniciativas promissoras para corrigir essas mal traçadas linhas da nossa história.
Para dar visibilidade e incentivar o hábito da leitura no Brasil, o Jabuti, um dos mais prestigiosos prêmios do meio literário brasileiro, promovido pela CBL, desde 2019, conta com a categoria Fomento à Leitura.
“Os resultados desses projetos vencedores são notáveis: não só aumentaram o interesse pela leitura em áreas com acesso limitado a recursos culturais e educacionais, mas também destacaram a importância da inclusão cultural e social através da literatura”, diz Sevani Matos, presidente da CBL, em entrevista ao NeoFeed.
Essas ações estão estimulando jovens e adultos a encontrarem na leitura e na escrita um espaço para se expressar.
Em 2015, o escritor Emerson Alcalde de Jesus e a professora e atriz Cristina Adelina Assunção idealizaram o Slam Interescolar SP, que seis anos depois recebeu o prêmio Jabuti de fomento à leitura.
A motivação nasceu de uma viagem que Emerson fez para representar o Brasil em um campeonato de poesia falada, na França. O Slam Interescolar SP é anual e está aberto a estudantes do ensino fundamental 2 e do ensino médio do estado de São Paulo. Na primeira edição, participaram quatro escolas. Este ano foram 372.
“Muitos dos participantes se interessam pelo concurso pela oralidade, mas descobrem que, antes, é preciso escrever”, conta Emerson, ao NeoFeed. “Como a maioria vem de escolas da periferia, percebe que tem dificuldade na escrita e na leitura. É aí que os professores entram, orientando os alunos a lerem. E eles passam a se dedicar à leitura e à escrita para melhor a poesia e sua performance.”
Letras indígenas
Para dar visibilidade e garantir a expressão de povos originários, a escritora e professora de arte Eva Potiguara, pertencente ao Povo Potiguara Sagi Jacu, de Baía Formosa, no Rio Grande do Norte, criou, em 2020, o projeto Mulherio das Letras Indígenas.
O grupo, formado por cerca de 60 escritoras de diferentes etnias e regiões do país, produziu o livro Álbum Biográfico Guerreiras da Ancestralidade, vencedor da categoria fomento à leitura do Jabuti 2023. A distribuição dos quase mil exemplares foi gratuita e a versão e-book da obra pode ser baixada também na internet, também sem custo.
Por meio de histórias pessoais, escritas em formato de contos, poesias e crônicas, Eva está realizada por difundir o conhecimento sobre a luta dos povos originários.
“O livro mostra que há uma diversidade cultural entre os indígenas, embora todos tenham em comum o sofrimento causado pela colonização que ainda nos machuca, porque há terras que precisam ser demarcadas e somos vítimas de vários tipos de invasões”, explica Potiguara, ao NeoFeed.
“Os livros estão vivos”
Para além das premiações, há muitos projetos igualmente reconhecidos. A Balada Literária, lançada em 2006, em São Paulo, é um case de sucesso.
Criada pelo pernambucano Marcelino Freire, autor premiado de Nossos ossos e Contos negreiros, entre outras obras, o evento literário gratuito promove aulas, shows, lançamentos de livros e bate-papos com autores consagrados nacionais e internacionais, além de “apresentar” novos escritores.
Realizada anualmente, A Balada expandiu seu território para Recife, Salvador e Teresina.
Freire coordena também oficinas de criação literária desde 2003, onde diz “formar” mais leitores do que escritores.
“Eu vou mostrando a importância de conhecermos outras autorias, conhecermos a escrita de nossos contemporâneos e de nossas contemporâneas. E muita gente já está por aí, espalhando seus parágrafos, aumentando essa grande comunidade da leitura e da escrita”, comemora ele, em conversa com o NeoFeed. “Ler é também escrever”, costuma pregar.
Para cultivar o hábito da leitura, é fundamental, segundo Freire, mostrar que os livros estão vivos e não são chatos. “A literatura está em tudo. Na música, no cinema, nos games, nas ruas. Temos de tirar os livros das estantes altas e fazer as palavras voltarem a pisar o chão”, defende.
Fundador da Reserva e CEO da AR&Co, Rony Meisler lançou, em 23 de abril, Dia do Livro, a Livraria Diferente. Em parceria com a Skeelo, plataforma de livros digitais, ele doou 18 mil exemplares de obras, “que tiveram impacto extremamente positivo ” em sua vida, como ele define.
Entre os títulos, estão Empodere-se — 100 desafios feministas para reconhecer sua própria força e viver melhor, de Maynara Fanucci, e A marca além do propósito, de Renato Figueiredo.
Do total de livros oferecidos pela Diferente, 5 mil são para os seguidores de Meisler nas redes sociais e 13 mil vão para instituições sociais, vinculadas ao Instituto Claro. “Quando acabarem os 5 mil livros, a livraria vai fechar para talvez abrir no mesmo dia em 2024”, explica Meisler.
Sem o domínio da língua, não dá
Além da falta de dinheiro, tempo e costume, a formação deficiente em língua portuguesa é outra grande barreira para o estímulo à leitura no Brasil.
Seis em cada dez estudantes brasileiros terminam o ensino fundamental 2 sem o domínio básico da língua portuguesa, aponta o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básico, do MEC.
“Para quem não domina a língua, é bem mais difícil a leitura despertar interesse”, afirma Elvis Cesar Bonassa, diretor da Kairós Desenvolvimento Social, consultoria especializada em políticas públicas, ao NeoFeed.
No artigo Formação de leitores e razões para a literatura, escritor Ricardo Azevedo levanta outra questão importante: muitas crianças têm contato com adultos — pais, professores e outros — que recomendam a leitura, mas que não são, eles próprios, leitores. Vale a reflexão.