Parto domiciliar vira disputa judicial – 15/05/2024 – Equilíbrio e Saúde


Gabriela Zanettini, 31 anos, lembra-se da noite de 3 de julho de 2020 como um momento mágico. Acompanhada de familiares, comeu e bebeu o que quis, movimentou-se livremente e deu à luz sua filha Helena na sala de casa, com pouca iluminação e lareira acesa, assistida por uma enfermeira obstétrica e uma parteira. “Elas praticamente não interferiram. Só olhavam, observavam e verificavam os sinais para analisar se estava tudo certo”, lembrou. “Por que quem faz o parto é a mulher.”

Além de escolher quem estaria ao seu lado naquele momento e de poder estar no conforto de sua residência, Zanettini tinha receio de sofrer violência obstétrica no hospital. Por isso, contratou as profissionais. Como sua gestação era de baixo risco, pôde ter Helena em sua casa, em Florianópolis (SC). “As parteiras têm preparo e levam os equipamentos necessários. Me senti segura”, contou.

O Parto Domiciliar Planejado (PDP), quando a gestante é assistida por uma equipe de profissionais como enfermeiras e obstetrizes— ou mesmo médicos, vem sendo ameaçado no Brasil. Uma ação civil pública do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (Cremerj), de 2018, que pode acabar com a prática, chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) em setembro do ano passado.

Na ação, os médicos solicitaram que as enfermeiras obstétricas Halyne Pessanha e Heloisa Lessa não realizassem partos domiciliares. Além disso, pediram que a proibição fosse estendida para toda categoria da enfermagem. Em 2021, em primeira instância, as enfermeiras venceram. Mas, no ano seguinte, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região alterou a decisão em favor do conselho.

Para Heloisa Lessa, uma decisão em favor do Cremerj resultaria no fim do parto domiciliar assistido por enfermeiras. “Por isso é tão grave. É uma decisão que atinge todas as enfermeiras e, mais do que as enfermeiras, as mulheres. Por que as gestantes vão continuar parindo em casa. Só que vão parir desassistidas, de uma maneira mais insegura. As mulheres não vão parar porque as enfermeiras não vão ao parto”, avaliou.

A questão da segurança

O Cremerj não se pronuncia sobre processos judiciais. Mas reafirmou sua posição sobre o parto domiciliar. “O Cremerj reitera a importância da realização de partos em ambiente seguro, como é o caso de uma unidade hospitalar. A recomendação se dá pela possibilidade de intercorrências que podem acontecer inesperadamente durante o procedimento, afetando a mãe e o bebê. O ambiente hospitalar é o local que possui a estrutura necessária para resolver casos de urgência ou emergência com agilidade e eficiência.”

A postura do Cremerj contra o PDP não recai apenas sobre as enfermeiras. Uma resolução do conselho de agosto do ano passado proibiu os próprios médicos de acompanharem partos domiciliares. Uma decisão judicial, em ação do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), suspendeu a medida.

O Conselho Federal de Medicina (CFM) não se pronunciou sobre o processo do Cremerj. Desde 2012 a autarquia tem uma norma recomendando que “a realização do parto ocorra em ambiente hospitalar de forma preferencial por ser mais segura”.

O Ministério da Saúde publicou, em 2021, uma nota técnica sobre o assunto. Reconhece que “toda gestante deve ter seus direitos e escolhas respeitados” desde que seja “informada sobre as vantagens e os possíveis riscos a respeito do local de sua escolha para o cenário de parto e nascimento”.

O documento diz, no entanto, que, “ancorado no princípio da precaução ou prudência e baseando-se no eixo da garantia da segurança no cuidado materno-infantil, desaconselha o parto domiciliar, no contexto brasileiro”. A DW questionou o ministério se havia alguma análise desta normativa, mas não obteve resposta até a publicação da reportagem.

Como é um parto domiciliar planejado

Para o Cofen, as mulheres têm direito à escolha informada sobre o próprio parto. O conselho ressaltou que o parto domiciliar é seguro seguindo algumas regras. Em fevereiro, publicou uma resolução sistematizando os parâmetros para a assistência da enfermagem obstétrica.

Em consultas de enfermagem pré-natal – mensais até 28 semanas, quinzenais entre 28 a 36 semanas e semanais a partir de 36 semanas de gestação –, a gestante deve ser classificada como de risco habitual (baixo risco). A mulher também precisa assinar um termo de consentimento livre e esclarecido.

Durante o parto, a equipe deve contar com pelo menos duas enfermeiras obstétricas, que, entre suas funções, avaliam os riscos e a necessidade de transferência para um hospital ou outra unidade de saúde caso a gestante precise de cuidados de maior complexidade. Se for necessário o deslocamento, as enfermeiras devem acompanhar a mulher até que outro profissional ou instituição assuma a assistência.

Lessa acompanhou cerca de mil partos domiciliares em 38 anos de carreira. A enfermeira obstétrica e doutora em enfermagem disse que precisou transferir aproximadamente 80 mulheres a uma unidade hospitalar. “O parto em casa não precisa necessariamente dar certo em casa. Ele começa a mostrar que não vai dar certo cedo. Então a hora de transferir não é a hora que o problema efetivamente aconteceu. E como você está o tempo inteiro ao lado da mulher, você consegue captar precocemente os sinais de que a coisa não está indo bem”, explicou.

Depois do nascimento, a norma do Cofen estabelece que a equipe de enfermagem precisa permanecer no domicílio por, pelo menos, três horas, garantindo que não haja risco de complicações para a puérpera e para o recém-nascido. Também precisa garantir a continuidade dos cuidados da mãe e do bebê no período de 45 dias.

Números

Os partos domiciliares representam menos de 1% dos nascimentos no Brasil nos últimos anos. Em 2022, por exemplo, últimos dados disponíveis no DataSUS, nasceram 2,5 milhões de bebês, sendo 17 mil em residências, ou seja, 0,67%. E vem caindo. Entre 2003 e 2012, foram realizados 337 mil. Na década seguinte (2013-2022), 195 mil.

O que ocorre no Brasil, ainda segundo o DataSUS, é uma grande queda de nascimentos em casa no Norte e Nordeste: de 329 mil no período entre 2003 e 2012 para 138 mil entre os anos entre 2013 e 2022. Já nas regiões Sudeste, Sul e Centro Oeste houve um aumento: de 44 mil para 57 mil.

“Apesar da diminuição no Norte e Nordeste, houve um aumento dos partos domiciliares nas grandes cidades. Isso está relacionado ao parto planejado. As mulheres passaram a ter acesso à informação”, avaliou Lessa. De acordo com a enfermeira, a grande maioria das mulheres que opta por esse tipo de parto tem ensino superior e um poder aquisitivo mais alto. Até porque, o custo de contratação de uma equipe, embora varie bastante no país, gira em torno de R$ 10 mil.

Informações do Congresso Brasileiro de Enfermagem Obstétrica e Neonatal (Cobeon) mostram que até o fim de 2023 foram identificadas 127 equipes de enfermagem obstétrica que atuam na assistência ao PDP no Brasil, com 300 enfermeiras obstétricas e obstetrizes, além de cerca de 50 médicos obstetras, distribuídos em 21 estados brasileiros.

A escolha e a confiança

A farmacêutica Jéssica Kruger, 33 anos, também optou pelo PDP. “Como minha gestação era de risco habitual e eu entendo o parto como um processo fisiológico, não vi necessidade de ser em um ambiente hospitalar”, contou.

Quando engravidou, Kruger, porém, não pensava em ter o parto domiciliar. Tanto que, inicialmente, contratou a equipe para acompanhá-la no hospital. Na medida em que foi se informando, conversando com outras mulheres, participando de rodas de gestante e lendo artigos científicos, perdeu o receio de que o parto fosse algo perigoso. Mas estava preparada para uma transferência para o hospital, caso fosse necessário. Sua filha, Lívia, nasceu no final de abril em casa. “Ela está ótima. Eu estou bem também. A recuperação foi tranquila”, afirmou.



Fonte: Folha de São Paulo

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