Cheguei da rua afobada. Soube que uma conhecida morreu de dengue hemorrágica. Ela tinha a minha idade, um pouco mais velha talvez. Frequentamos a mesma praia quando crianças e convivemos muito. Conheço a família e fiquei imaginando a tristeza deles.
Abri o computador e fui ao Google pesquisar sobre dengue hemorrágica, quem é mais propenso, como fazer para tentar evitar a morte, essas coisas. Quando dei por mim estava em um looping de medo, pânico e tristeza. Caí num choro profundo. Só nos últimos meses, tive conhecimento de duas amigas da minha idade que morreram. E isso mexe muito. A primeira não aguentou o tranco da vida, a segunda foi derrubada pela doença que se espalha pelo Brasil.
Esses momentos, quando na ativa, seriam um prato cheio para eu beber. Eu precisava me anestesiar. Sabe o meme? O Brasil me obriga a beber? Pois era o meu lema. Hoje não posso e nem consigo agir como agia. Chorei por uns dez minutos, as duas presentes na minha memória, com muitas e boas lembranças. Então achei que seria bom sair um pouco dessa vibe, abri um livro mas não consegui me concentrar, liguei a TV e num desses canais de streaming vi o anúncio de um filme que muita gente tinha me recomendado: “Dias Perfeitos”. Caramba, era tudo que eu precisava.
Música boa, imagens de Tóquio (eu amo o Japão, apesar de nunca ter ido). O personagem curte o dia e as pequenas coisas da vida. Fui percebendo o quão parecida sou com ele, depois de anos doente. No meu caso, o prazer em comer bem, dormir bem, e curtir o simples deve-se muito à paz que sinto depois da minha vida com o álcool. Aquele filme foi me acalmando, mas em determinado momento, quando ele passa por uma situação delicada, ele vai a uma loja e compra algumas latinhas de bebida (eu supus que fosse cerveja) e um maço de cigarro. Aquilo me chamou atenção. Esse personagem escolheu essa vida depois de ter passado por algumas turbulências –seria o álcool, como aconteceu comigo?
Claro, a vida dele era uma escolha diária. Se tem a ver com o álcool eu não sei, mas para mim foi a leitura perfeita. Eu vivo hoje o dia em que estou. Nem sempre é um dia fácil, mas moro perto de uma praça e religiosamente vou lá com meu cachorro. No percurso entre as árvores, percebo que sou feliz igual ao homem do filme. Olho o céu, as cores e abro um sorriso quando me dou conta da alegria quase boba que me dá.
Um dia entrei em uma sala de AA e li uma frase que fez todo sentido para mim: “Eu bebi pra ser quem eu sou hoje sem a bebida”. Apesar de soar estranha, eu tenho essa relação com a bebida. Foi tão ruim, tão desastroso, eu sofri tanto por um período extenso da minha vida que agora tudo que eu quero é paz, viver uma rotina curtindo os gostos das comidas, bebendo água, comendo fruta e fazendo o simples. E talvez só saiba o gosto da vida atual por conta da minha guerra pessoal.
O filme me remeteu aos dias em que eu brincava na praia quando criança. A praia que foi testemunha de tantos encontros entre mim e as duas amigas que morreram. Ambas conviveram comigo na infância e adolescência. Um tempo que não volta mais, mas que foi eternizado pelas nossas histórias. Não era tempo de morrer, mas quem disse que alguém controla o tempo?
Meus dias naquela praia eram, em sua maioria, aflitivos. Talvez porque meu pai nunca estivesse presente e, quando estava, bebia demais. Talvez porque eu percebesse que o clima na minha casa não era lá muito bom. Então eu sofria, eu chorava e eu temia a minha morte. Temia a morte da minha mãe. Eu ficava à espera de uma notícia ruim porque sentia uma coisa ruim. Hoje, com mais de quarenta anos, eu estou aqui. Choro pelas amigas que foram, e vejo que nada do que pensava quando criança realmente aconteceu. E aconteceu tanta coisa que eu jamais imaginava…
Elas não eram mais amigas tão próximas, mas a que morreu em decorrência da dengue era minha vizinha hoje em dia. Eu a encontrava direto na rua com sua filha.
O mundo precisa existir de uma forma boa para a filha dessa amiga. E ele vai, porque a vida passa, as coisas acontecem e o tempo vai ajudando. Assim como ajudou a me perdoar por tanta perda de tempo. Por tantos desmaios, tantas quedas e tantas ausências que passei por causa do álcool.
Eu sou alcoólatra, tenho que me cuidar. Jamais posso achar justificativa para tascar uma garrafa de bebida goela dentro. A minha dor não é comparável a nenhuma outra. Cada um tem seu destino, suas tristezas, sua vida. Graças ao meu alcoolismo eu consigo ser uma pessoa que percebe mais, que tenta julgar menos.
Não dá para mudar nada. Tentei entender por que ela tinha morrido de dengue, por que a outra tão querida tinha desistido da vida. É difícil aceitar, mas é cada vez mais fácil não julgar nem culpar nada. Aceito. Não há outra solução. E aconteça o que acontecer, não vou beber.
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