Não é verdade que um professor da USP (Universidade de São Paulo) tenha descoberto uma substância química capaz de curar o câncer, ao contrário do que diz vídeo compartilhado em grupos no WhatsApp. Mais conhecida como “pílula do câncer”, a fosfoetanolamina sintética virou o centro de uma polêmica médica em meados de 2015, mas nunca teve sua eficácia comprovada.
O vídeo encaminhado por um leitor para a Folha verificar é uma propaganda da ABC (Associação Brasileira do Consumidor) de 2015, que traz trechos de uma reportagem da EPTV, afiliada da Globo no interior de São Paulo, sobre a descoberta da fosfoetanolamina sintética pelo professor Gilberto Orivaldo Chierice, do Instituto de Química da USP em São Carlos.
“Um pesquisador da USP de São Carlos descobriu uma substância que trata a doença [o câncer] sem deixar sequelas, sem enfraquecer o sistema imunológico, sem mutilações e sem causar a queda de cabelos. Mais de 800 portadores de câncer já utilizaram o remédio e todos os pacientes obtiveram excelentes resultados”, diz trecho do vídeo com a declaração enganosa.
A fosfoetanolamina não é considerada uma substância alternativa para o tratamento de câncer. Seu uso como pílula teve início na década de 90, mesmo sem comprovações científicas, e se baseava na hipótese de que a substância funcionaria como um marcador das células cancerígenas, o que ajudaria o sistema imunológico no combate à doença. Ocorre que a eficácia da substância nunca foi comprovada por testes clínicos. A USP fechou o laboratório de química e denunciou o professor Gilberto Chierice por crimes contra a saúde pública e curandeirismo.
Contatada pela Folha, a Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica enfatizou que não há embasamento científico para associar a fosfoetanolamina ao tratamento alternativo para o câncer. “Estamos em um momento no qual existem tratamentos eficazes e seguros para a maioria dos tipos de câncer. Substituir terapias comprovadas por alternativas sem evidência científica pode colocar o paciente em risco de vida e de toxicidade”, afirma a entidade.
A reportagem também entrou em contato com a Anvisa. A agência reguladora também reforçou que não há medicamentos registrados com a substância fosfoetanolamina e, por isso, a divulgação e o comércio do produto químico não são permitidos no país. “Somente medicamentos registrados podem realizar alegações terapêuticas de cura, tratamento e prevenção de doenças e outros agravos à saúde, mediante comprovação de sua eficácia e segurança”, diz a nota.
O Inca (Instituto Nacional do Câncer) esclarece que apesar da grande repercussão na mídia na época, até o momento, não há nenhum fato novo que demonstre a eficácia da fosfoetanolamina no tratamento de tumores, inclusive “não existem estudos clínicos demonstrando a segurança toxicológica do uso da molécula em seres humanos”.
A Folha tentou contato com a Associação Brasileira do Consumidor, mas não obteve retorno até a publicação deste texto.
Polêmica
Ainda que não tenha sua eficácia comprovada, a “pílula do câncer” foi distribuída gratuitamente na USP de São Carlos por pelo menos 20 anos. Segundo o professor Gilberto Chierice, já falecido, o laboratório de química da universidade chegou a produzir 50 mil cápsulas por mês, o que atenderia cerca de mil pacientes.
Mesmo com a popularidade alta entre os pacientes oncológicos, a pílula ganhou repercussão nacional só a partir de 2015, com o aumento no número de ações judiciais movidas contra o Instituto de Química. É que pacientes recorreram à Justiça para ter acesso ao medicamento, após a portaria nº 1389/2014, publicada pela diretoria da universidade, determinar que a distribuição de substâncias com a finalidade medicamentosa só poderia acontecer com a apresentação de licenças e registros.
O assunto chegou a ser tema de discussões no Congresso Nacional e a polêmica da fosfoetanolamina sintética ganhou novos contornos em outubro de 2015, quando o STF (Supremo Tribunal Federal) liberou o uso da droga a um paciente em fase terminal. No ano seguinte, por meio da aprovação da lei 13.269/2016, de autoria do então deputado federal Jair Bolsonaro, parlamentares autorizaram a produção, importação, distribuição, prescrição e uso da fosfoetanolamina sintética independentemente do registro da Anvisa, contrariando a posição de entidades de saúde.
O projeto de lei foi sancionado pela então presidente Dilma Rousseff (PT), às vésperas do impeachment. Só que a decisão durou pouco tempo. Cerca de um mês depois, o Supremo derrubou a validade da lei e proibiu a liberação das cápsulas, por entender que a ausência de testes colocava em risco a vida dos pacientes. “O fornecimento de medicamentos não pode ser com atropelos de requisitos mínimos de segurança para o consumo da população sob pena de esvaziar o próprio conteúdo do direito nacional à saúde”, disse o relator do caso, ministro Marco Aurélio.
Com a repercussão do caso, dois estudos sobre a eficácia da “pílula do câncer” foram iniciados. Uma pesquisa do Icesp (Instituto do Câncer do Estado de São Paulo), financiada pelo governo do Estado de São Paulo, analisou por oito meses a eficácia da substância em 59 pacientes avaliados, mas, em 2017, foi suspensa por falta de “benefício clínico significativo”. Outro estudo, promovido pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, também mostrou que camundongos e ratos com câncer que receberam doses da substância não tiveram nenhuma melhora –os tumores presentes no organismo dos animais continuaram a crescer. O único resultado positivo das análises foi a indicação de que a fosfoetanolamina não seria tóxica.
O resultado dos estudos foi contestado por Gilberto Chierice e as pesquisas sobre a pílula anticâncer foram alvos de uma CPI, conduzida pela Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo). O relatório final do colegiado, de 2018, apontou falhas nas pesquisas e que o estudo deveria continuar. Até hoje, a eficácia da fosfoetanolamina sintética contra o câncer não foi provada.
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