Com as enchentes que afetam o Rio Grande do Sul desde o final de abril, as Secretarias Municipais e Estadual de Saúde em parceria com organizações sociais uniram esforços para que a distribuição de medicamentos para pessoas com HIV seguisse normalizada.
Ana* (nome fictício), 75, vive com HIV há 27 anos. Moradora do bairro Sarandi, zona norte de Porto Alegre, saiu de casa com a água já no peito, apenas com a roupa do corpo e os documentos. Com a água subindo rapidamente, não houve tempo de Ana pegar os medicamentos de uso diário.
Para não interromper o tratamento, através da parceria entre a Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre e da Casa Fonte Colombo —Centro de Promoção da Pessoa Soropositiva—, Ana recebeu os medicamentos para manter os cuidados por mais um mês.
Daila Raenck, que coordena a Caist (coordenadora de atenção às infecções sexualmente transmissíveis), afirma que foi criado um plano de contingência para deixar os pacientes desamparados, tanto os que estão em abrigos como os que estão alojados em residência de familiares ou amigos.
“Estabelecemos, junto às coordenações dos abrigos, um canal de comunicação para que possam nos acionar através de um formulário. No caso de abrigados com HIV, um médico infectologista realiza a avaliação e o medicamento é enviado por um motoboy. Para crianças expostas ao HIV, enviamos a fórmula”, explica Raenck, citando que já foram recebidas 364 solicitações dos abrigos, a maioria já atendida.
A Casa Fonte Colombo atende há 25 anos pessoas em situação de vulnerabilidade portadores de HIV, a instituição dedica-se à prevenção e oferece assistência aos portadores. A sede da Casa, que fica localizada no bairro Floresta em Porto Alegre, também foi atingida pela enchente.
“As pessoas que já estão em locais de difícil acesso, são moradores de periferias, em periferias, lugares com pouca estrutura. Nessa situação, as pessoas com HIV se tornam ainda mais vulneráveis. A situação já é muito delicada, e piora porque a maioria não tem para onde ir, não podem voltar para suas casas, porque não existe mais nada. Devido à proporção que foi, baixando as águas, não vai sobrar nada dentro de casa”, aponta a colaboradora da Casa Fonte Colombo, Cristiane Saraiva Marins.
Ana também está preocupada com o futuro, pois sua casa foi totalmente alagada, resultando na provável perda de todos os pertences. “A gente vai pra onde? Para casa não dá para ir. Na casa da minha filha a água entrou pelo esgoto, não tem como. Nós vamos ter que ir para outro lugar”, lamenta.
No momento, no abrigo, Ana está dividindo o quarto com outras 12 pessoas. Ela afirma que não deseja que as pessoas saibam que ela é portadora do HIV.
“Até hoje existe preconceito. A gente sabe como os outros vão reagir. Convivo com isso há anos. Pela reação das pessoas, a gente consegue entender quando elas tem preconceitos. não quero que todo mundo saiba”, relata.
O coordenador e um dos fundadores da Casa Fonte Colombo, Frei José Bernardi, aponta que o caso de Ana não é uma exceção. Mesmo os usuários que convivem com a doença há muito tempo preferem não expor que são portadores do HIV.
“Há um temor por serem reconhecidas com HIV, dado do estigma e a discriminação. É muito marcante, sobretudo nessa população mais vulnerável. Recebemos pessoas que a própria família não sabe por conta do estigma e da discriminação. Muitas vezes a pessoa já está empoderada dessa situação, mas como sabe como as pessoas vão reagir, prefere não se expor”, explica.
Lourdes*, 51, é moradora da Ilha da Pintada, uma região que ficou submersa com a inundação do rio Guaíba. Ao ser resgatada de barco na sexta-feira (3), conseguiu levar para o abrigo os medicamentos para manter o tratamento que faz há 20 anos. “Tenho os medicamentos para o primeiro mês. Mas o posto que eu consultava está totalmente alagado”, diz.
Por outro lado, Marins, da Casa Fonte Colombo, afirma que as tratativas que aconteceram entre governo do estado, federal e municípios atingidos deram certo. “Duas pacientes que estavam sem medicação preencheram o formulário e receberam em tempo recorde seus medicamentos devido à essa articulação.”
Ela destaca também que mesmo os pacientes que não foram afetados diretamente com as enchentes foram atingidos indiretamente. “Muitos estão acolhendo alguém que foi atingido, o que acaba sobrecarregando a vida deles. Eles já vivem em espaços pequenos, e ainda recebem mais gente. Com a escassez dos produtos, tudo fica mais caro”, diz.
A coordenação do Caist garante que não faltará abastecimento de medicação nem de testes rápidos, tendo em vista que foi enviado um reforço de insumos pelo Ministério da Saúde.
Além disso, os pacientes podem buscar o serviço especializado mais próximo ao local que esteja abrigado, mesmo sendo de um outro bairro ou até mesmo de outra cidade.