Boas surpresas sobre coisas brasileiras às vezes surgem em inglês. Foi assim, anos atrás, com o livro “Samba”, de Alma Guillermoprieto, e se repete agora com “Trippy”, de Ernesto Londoño.
O jornalista de família colombiana educado nos EUA foi correspondente do jornal The New York Times no Brasil. Se alguma casa editora nacional se dispuser a publicar a obra, poderia traduzir o título como “Viajandão”, embora nem o original inglês nem essa versão em português façam justiça à gravidade do livro.
O subtítulo capta melhor a atmosfera do texto: “O perigo e a promessa de psicodélicos medicinais”. Uma frase genérica, que tem o defeito de tirar o foco da ayahuasca, epicentro do volume, chamando porém a atenção para aspectos tanto sombrios quanto iluminadores do chá amazônico alterador da consciência.
Não conte com informação científica detalhada sobre pesquisas clínicas recentes que atestam o potencial terapêutico de psicodélicos contra transtornos psíquicos, como MDMA para estresse pós-traumático ou psilocibina para depressão. O que aparece vem na medida certa, para dar o contexto necessário.
O forte da narrativa está nas experiências vividas pelo autor durante e depois das cerimônias com a bebida, também conhecida como daime. Londoño participou de várias, no Brasil, na Costa Rica, no Peru, nos EUA.
A sinceridade é notável. Gay e depressivo com fantasias suicidas, o jornalista descreve as dificuldades de relacionamento e adaptação que enfrentou no Rio de Janeiro, depois de bem-sucedida carreira como correspondente de guerra e editorialista.
As primeiras experiências com ayahuasca o lançam numa reavaliação profunda da própria personalidade, da biografia e da história familiar. Para não entregar spoiler, cabe apenas dizer que há no epílogo um final feliz, após caminho árduo pontuado por testemunhos de cenas apavorantes.
Nos centros e rituais que visitou, Londoño presenciou e desencavou histórias que bem ilustram os riscos de experiências psicodélicas que deveriam ser terapêuticas e resultam abusivas. Assédio sexual, exploração econômica, manipulação espiritual e até maus-tratos físicos abundam nas páginas mais escuras.
Não falta luz, contudo. Lutando por vezes com a índole cética e distanciadora do jornalismo de qualidade, o repórter consegue render-se ao poder das plantas da ayahuasca, chacrona e mariri, relevando o misticismo que costuma acompanhar as cerimônias, para não falar de muitas mistificações neoxamânicas.
É talvez o efeito colateral mais benfazejo de psicodélicos: uma enorme boa vontade e inesgotável tolerância com o que é humano, mesmo nas manifestações mais patéticas. Sob seu efeito, mesmo o mais cartesiano e ateu dos jornalistas se torna menos cego para a insuficiência das certezas e para a própria vulnerabilidade.
Nesta altura o leitor já irá perguntar-se se o colunista não está a falar mais de si do que de Londoño. É provável que outros psiconautas experimentem a mesma identificação reconfortante na leitura. E é desejável que ela também assalte aqueles que poderiam curar-se com terapias psicodélicas já no horizonte clínico.
O chamado renascimento psicodélico para a medicina ganhou atenção pública em 2018 com o best-seller “Como Mudar sua Mente”, de Michael Pollan. Que “Trippy”, de Ernesto Londoño, possa fazer algo semelhante em favor da tecnologia milenar dos indígenas da Amazônia.
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