Um conhecimento indígena milenar foi guardado em um frasco. Com algumas gotinhas ao dia, sem nenhuma visão psicodélica ou necessidade de um ritual, você pode combater a depressão, ansiedade, insônia e ainda ampliar seu autoconhecimento e conexão com a espiritualidade. É o que prometem os vendedores de microdoses de ayahuasca, a despeito da contraindicação dos especialistas e reprovação de líderes religiosos.
As microdoses contêm uma quantidade de 10% a 20% de uma dose típica do psicodélico. São usadas por seus supostos benefícios cognitivos, mas sem a experiência completa. Elas se popularizaram mais recentemente como uma prática no Vale do Silício, nos Estados Unidos. Trabalhadores de tecnologia começaram a usar LSD e cogumelos (psilocibina) em pequenas doses como forma de aumentar a criatividade e a sociabilidade, consideradas importantes para essa área de negócio.
No Brasil, a microdosagem foi ampliada para o chá de ayahuasca, que é permitido no país para a realização de rituais. Estudos revelam a presença de ayahuasca em panelas encontradas em sítios arqueológicos de 5.000 anos. Feita de uma mistura de duas plantas amazônicas, geralmente o cipó-caapi (Banisteriopsis caapi) e as folhas da chacrona (Psychotria viridis), faz parte de uma tradição indígena, mais tarde incorporada em religiões como Santo Daime, União do Vegetal e Barquinha.
O chá é consumido em rituais realizados em grupo, conduzidos por xamãs indígenas ou líderes religiosos. Os relatos são de fortes ânsias de vômito logo após beber a mistura. Em seguida, é descrita uma sensação expansão de consciência, que tecnicamente é uma alucinação —a droga atua em centros cerebrais ligados à visão. Algumas tradições chamam de “miração”, outras de “entrar na força”.
A profissional de relações públicas Anne Elisabete Brito, 43, já havia tomado a dose inteira do chá da ayahuasca quando comprou sua primeira microdose. Segundo ela, estava sem coragem e sem tempo para repetir a dose do chá.
“Geralmente, os rituais são a madrugada inteira. Começa no início da noite e fica até de manhã. É bem difícil dormir e não tenho essa disponibilidade de sair a noite inteira e voltar para casa de manhã. Então o floral funciona muito bem no meu organismo”, diz Brito.
Anne afirma que as microdoses a ajudaram a se sentir mais no tempo presente. “Muitas coisas aconteceram na minha vida e eu não estava conseguindo acompanhar”, diz. Ela tomou uma pequena dose pela manhã e outra um pouco maior à noite, todos os dias, durante 28 dias, para cada frasco —até agora foram dois.
As plataformas que vendem as microdoses de ayahuasca também as chamam de florais —soluções contendo diluições de extratos de flores ou outras partes de planta. Os produtos são variados, com uma média de preço de R$ 70, e muito fáceis de achar online, apesar de serem proibidos pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Para a reportagem, a Folha comprou um frasco vendido pela plataforma “Aya Cura”, por R$ 79,90. O produto chegou após alguns dias e foi enviado para análise no Ciatox (Centro de Informação e Assistência Toxicológico), da Faculdade de Medicina da Unicamp (Universidade de Campinas).
Na microdose foram encontrados a substância psicodélica dimetiltriptamina (DMT) e a harmina, os dois químicos presentes na ayahuasca —cada um de uma planta diferente, explica José Luiz da Costa, coordenador executivo do Ciatox. Mas as concentrações estavam desequilibradas em comparação ao chá.
A Aya Cura afirma em seu perfil do Instagram que faz “medicina indígena, natural e milenar”. Para assegurar o efeito terapêutico da microdose, usam um vídeo no qual o pesquisador Dráulio Araújo, do Instituto do Cérebro da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), fala dos resultados positivos de sua pesquisa sobre o efeito da ayahuasca em pacientes com depressão.
“O que o site e vários outros fazem é usar os resultados que temos hoje para a dose inteira e extrapolar isso comercialmente para a microdose. Essa distorção comercial tem sido feita em cima da pesquisa”, diz o pesquisador à Folha.
O estudo de Araújo foi publicado em 2018 na Psychological Medicine, da editora da Universidade de Cambridge (Reino Unido). Nele, os pacientes com depressão resistente que receberam a ayahuasca tiveram uma redução significativa, durante sete dias, na gravidade dos sintomas, em comparação com os que receberam o tratamento placebo.
Há pesquisas sobre microdoses psicodélicas, diz Luís Fernando Tófoli, professor de psiquiatria da Unicamp e coordenador da Icaro, rede de pesquisa e divulgação sobre a ayahuasca. Elas, porém, não têm resultados que diferenciam claramente o efeito da microdose do efeito placebo, afirma.
“As pessoas sentem um grau de alteração leve. Mas a ponto de estarem de fato mais criativos e inteligentes ou melhorar sintomas de depressão e ansiedade, não está comprovado”, diz Tófoli.
“Eu pesquiso esse tema, acho que são promissores, principalmente em doses inteiras e com acompanhamento de psicoterapia, mas não é nada regulamentado no Brasil”, afirma Tófoli.
Os especialistas afirmam que os riscos do uso das microdoses são baixos, mas temem que os usuários fiquem à mercê de um suposto charlatanismo, uma vez que não há garantia dos compostos usados na fórmulas, nem controle de qualidade.
E se a ciência tem fama de ser rigorosa com conhecimentos tradicionais e alternativos, mesmo os líderes religiosos não ficam atrás no julgamento das microdoses.
“O conceito de religiões ayahuasqueiras brasileiras engloba três tradições: o Santo Daime, a União do Vegetal e a Barquinha. Nenhum desses grupos, que organizaram suas normas de ritual ao longo do século 20, utiliza em suas práticas religiosas o termo microdose”, diz o pesquisador Glauber Loures, coordenador técnico do Iceflu, instituto do Santo Daime.
Para Marcelo Mercante, dirigente da filial de São Paulo de um centro da Barquinha, o problema da microdose é reduzir a ayahuasca a uma questão química. “Eu, particularmente, não administraria fora de um contexto religioso. Não tem estudo de caso, isso é meio que ‘achismo’ e pode ser simplesmente placebo”, diz.
O ex-presidente da União do Vegetal, Tadeo Feijão, afirma que a experiência individual vai além da substância. “Tem o ambiente, a motivação da pessoa e a substância em si”, diz. “Aquela experiência que vem da experiência comunitária não está presente nas microdoses, e a motivação é um resultado rápido como quem quer Tylenol, não é espiritual. Vai sobrar a interação entre a pessoa e a substância.”
Os indígenas, detentores da medicina tradicional, preocupam-se com a popularização do uso da ayahuasca já há um tempo.
Em 2017, durante a 1ª Conferência Indígena da Ayahuasca, representantes dos povos indígenas do Vale do Juruá, na Amazônia, redigiram uma carta de recomendação interna na qual registraram “preocupação com o uso inadequado das medicinas pelos nawás/igrejas e a comercialização, podendo gerar situações graves associadas a este uso”. Um exemplo citado foi o uso da ayahuasca em festas diversas, em forma de comprimido e como uma droga psicodélica.
A Anvisa publicou duas resoluções, em 2023 e 2021, determinando apreensão e proibindo comercialização, distribuição, fabricação, propaganda e uso de florais e microdoses da ayahuasca. A agência esclarece que o uso da ayahuasca é proibido no país, exceto para uso estritamente ritualístico-religioso e de pesquisa por órgãos e instituições acadêmicos previamente autorizados.