Entenda os mecanismos por trás do vício no cérebro – 26/07/2024 – Luciano Melo


Suponho, prezada leitora, que há em algum canto de sua memória, as famosas cenas de ratinhos engaiolados consumindo drogas compulsivamente em um laboratório. Se provoquei recordações, decerto, sua mente retomou as imagens das cobaias, dose após dose, descuidando da alimentação, em torno do ponto em que os psicotrópicos eram livremente providos.

Saiba que este experimento serviu de mote para outros, mais incrementados. Em um destes, os animais venciam, resistiam, suportavam a dor para estarem junto às substâncias psicoativas. Em outro, os cientistas observaram os roedores em retorno ao abuso, tão logo fossem expostos à dor, às pequenas frações de drogas, ou a qualquer objeto ou situação relacionada aos produtos viciantes.

Por fim, os pesquisadores implantaram dispositivos eletrônicos dentro do crânio dos camundongos, para suprimir a atividade dos centros cerebrais de recompensa. Como resultado, os mamíferos perderam o interesse pelas drogas.

Experimentos como estes foram úteis para os neurocientistas mapearem a circuitaria cerebral geradora da sensação prazer, e compreenderem o papel da dopamina como a ignição do desejo.

Você, lúcida leitora, a menos que esteja muito distraída, notou um paralelo entre as ações das cobaias e das pessoas viciadas em drogas. Assim também fez Alan Leshner, quando era diretor do Nida (Instituto de Abuso de Drogas dos Estados Unidos). Só que ele, e não você e muito menos eu, publicou um artigo na revista Science em 1997, que se vingou muito influente. No documento, estava a tese do vício como uma doença cerebral crônica e recorrente. Leshner admitiu que decisões voluntárias e conscientes ocasionam os primeiros usos de drogas viciantes. Mas a repetição muda a neuroquímica e as conexões cerebrais a fazer dos pensamentos e das ações, prisioneiros do consumo.

O diretor do Nida refinou posteriormente sua teoria ao estudar imagens do funcionamento cerebral de pessoas viciadas. Em sua análise, há muitas provas de que o vício ao dominar os sistemas neurais de recompensa e de antecipação deteriora o cérebro. O órgão avariado perde as propriedades do julgamento e do controle cognitivo e permanece adoecido.

Este problema se estabelece em etapas. Após os usos iniciais, mecanismos encefálicos de saliência promovem a constante recordação dos efeitos intensos das drogas, e outros provocam a motivação irresistível para a repetição. Com o tempo, os movimentos desvencilham-se das intenções, a motivação já não é mais necessária. A capacidade de inibição e de escolha são selecionadas. Nesta etapa as decisões são impulsivas. Posteriormente, há uma complicação, o impulso não é necessário, drogar-se tornou-se uma atitude automática, compulsiva. O livre arbítrio está erradicado. Este suceder é sustentado por alterações da estrutura encefálica.

Curiosa leitora, nas próximas linhas lerá uns termos complicados, mas eu me esforçarei para simplificar, sem perder o rigor. Você leitor, mais impaciente, está convidado a pular para o próximo parágrafo, desta forma está poupado de pretensiosismo técnico. Às interessadas, apresento a anatomia do vício, seguindo conceitos pós Leshner. O córtex pré-frontal que sustenta a razão e o controle mental, deixa de operar normalmente, influenciado pelo núcleo accumbens, estrutura encefálica ligada à sensação de prazer.

Finalmente, uma região cerebral chamada de corpo estriado dorsal prevalece, como consequência drogar-se transforma-se em automação resistente às consequências. Pesquisadores também demonstraram que as substâncias psicoativas mudam a expressão de genes, uma outra forma de restringir o indivíduo ao redor do abuso.

Cada uma das alterações neurológicas é um alvo potencial para uma intervenção médica, seja farmacológica, cirúrgica ou quem sabe, de manipulação genética. No entanto, a despeito de todo conhecimento acumulado, poucos fármacos foram produzidos contra o vício. Para piorar, os raros remédios desenvolvidos não são tão melhores dos já existentes em 1997. Outro ponto desanimador, algumas das moléculas utilizadas com o propósito de induzir abstinência, são, perigosamente, viciantes.

Alguns pesquisadores enumeram estes fracassos, enquanto destacam os sucessos expressivos de medidas socioambientais contra as drogas. A imposição de altos impostos sobre cigarros, a proibição à publicidade do fumo, a redução de locais em que se possa fumar, reduziram o número de fumantes na Austrália, nos EUA e no Brasil. Estes resultados dão evidências de que olhar para as estruturas encefálicas não foi a melhor forma de reduzir a difusão das drogas, ao menos, até o presente momento.

Ainda assim o Nida destina grande parte de seus fundos para pesquisa biomédica, neurociência e farmacoterapia. Mas negligência, de certa forma, a proposição de políticas públicas e socioambientais. Sob o olhar desta agência, houve uma explosão de mortes causadas por overdose de medicamentos semelhantes à morfina, impulsionadas por receituários médicos.

Mas há uma defesa às posições do Nida. Antes da idealização da teoria do vício como doença cerebral, era a norma afirmar que a razão da compulsão por drogas seria falha moral e fraqueza de caráter. Logo, os indivíduos viciados eram considerados corrompidos e sem autocrítica.

Atualmente, sabemos que eles merecem tratamentos, não o depósito da culpa ou uma punição social qualquer. Outro quesito, algumas pessoas sentem-se confortáveis ao compreenderem o próprio vício como consequência de um desarranjo cerebral, e não de perversão. É possível que um indivíduo viciado ao receber o diagnóstico tenha a sensação de pertencer a um grupo, situação benéfica e acolhedora.

No entanto, alguns pesquisadores alertam que quando chamamos o viciado de doente, podemos estar meramente trocando estigmas. Para alguns, no nome doença está embutido uma permanente essência inviolável. Há pessoas que superaram o vício e se sentem melhores por terem conseguido se desvencilhar da experiência, estes enxergam-se fortes e não doentes crônicos.

O vício como doença crônica cerebral foi dado como um consenso entre a comunidade de pesquisadores, em publicação da Nature. Mas não é. Continuarei o tema da próxima coluna.


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Fonte: Folha de São Paulo

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