Ainda reverbera, no campo psicodélico, a rejeição da psicoterapia com MDMA (ecstasy) para transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) pela agência norte-americana de fármacos, FDA, no começo do mês. Ainda há quem tente dourar a pílula, mas é evidente que novos tratamentos atrasarão anos, talvez uma década.
A agência reguladora exigiu da Lykos a realização de um terceiro teste clínico de fase 3, para o qual a companhia hoje não dispõe de fundos. São necessárias dezenas de milhões de dólares para isso.
Os otimistas, alguns movidos por oportunismo, afirmam que o baque terá sido benéfico para terapias psicodélicas, por acionar um freio de arrumação. Se e quando essas drogas puderem ser receitadas, argumenta-se, estarão cercadas de mais rigor e implicarão menos riscos para pacientes.
Só falta os críticos angelicais, desses que transformam o ótimo em inimigo do bom, convencerem centenas de milhões deprimidos graves e portadores de TEPT que hoje não respondem aos tratamentos disponíveis. Psicodélicos, embora não sejam panaceia, prometiam a chance de melhora para ao menos alguns deles.
Com a freada imposta pelo estamento biomédico, escafedeu-se a Lykos Therapeutics, que apresentara o pedido de licença à FDA. A Lykos demitiu uma centena de empregados, 75% de sua força de trabalho.
De quebra, se livrou de seu conselheiro Rick Doblin, fundador da ONG Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps, em inglês), da qual a empresa se originou. A Maps também cortou 33% de seu pessoal.
A Lykos fez mais: contratou para liderar a ressurreição da MDMA o médico David Hough, da farmacêutica Janssen, que cuidou da licença do medicamento Spravato. Trata-se de uma formulação nasal de cetamina, um anestésico dissociativo aprovado para depressão que não chega a ser psicodélico, mas deflagra viagens similares.
Para piorar, o periódico Psychopharmacology cancelou três artigos da Lykos/Maps com os resultados de testes clínicos com MDMA. A revista alegou má conduta ética em um caso de abuso sexual de paciente e falta de transparência sobre ligações de pesquisadores com a Maps. Autores como Doblin discordaram da retração.
O fundador da ONG disse em comunicado que deixou o conselho da Lykos para poder falar livremente, sem prejudicar a empresa perante autoridades reguladoras. Ele defendeu quatro décadas de pesquisas lideradas pela Maps com recursos filantrópicos, que pavimentaram o caminho para o chamado renascimento psicodélico e para centenas de empresas que tentam lucrar com isso.
“Minha voz e visão de ativista são necessárias agora, mais do que nunca, na MAPS e em nossa comunidade mais ampla”, declarou. “Tenho orgulho de ser chamado de ativista –alguém disposto a agir para tentar melhorar o mundo.”
“Meu maior fracasso foi não conseguir levantar todo o dinheiro em filantropia e ter que trabalhar com investidores. Uma vez que você aceita investidores, as coisas precisam mudar”, afirmou numa entrevista “sem amarras” à newsletter STAT. Doblin acusa a FDA de mudar de lugar as traves do gol ao rejeitar a MDMA.
Uma das razões para recusa foram dúvidas sobre o duplo cegamento do teste clínico, em que voluntários e experimentadores não sabem quem tomou a droga ou placebo, exigência quase impossível de cumprir com substâncias de efeito tão óbvio quanto psicodélicos. Isso já havia sido discutido com a FDA, que aprovou o desenho do estudo.
Outro argumento contra a aprovação foi interferência de altas expectativas de sucesso entre pacientes e terapeutas. Muitos deles já tinham usado MDMA e estariam convencidos do potencial terapêutico, uma fonte de viés nos dados apresentados.
Robin Carhart-Harris, renomado cientista psicodélico hoje na Universidade da Califórnia em São Francisco, criticou na rede X um artigo de opinião no jornal “The New York Times” que destacava essa crítica da FDA.
Ele afirmou não haver prova de que a expectativa de resultados positivos aumente a reposta terapêutica. Ao contrário, artigo seu com colegas do Imperial College de Londres mostra que esse efeito placebo seria mais forte com o antidepressivo escitalopram do que com psilocibina (psicoativo de cogumelos “mágicos”).
Outro ponto das críticas à Lykos/Maps seria a crença injustificada numa faculdade interior de cura (“inner healing”, em inglês). Opositores da empresa numa espécie de extrema esquerda do movimento psicodélico, que gravita em torno da ONG Psymposia, viam aí razão para estigmatizar a turma de Doblin como uma seita, cujo excesso de convicção no poder dos psicodélicos implicaria risco para pacientes.
Uma acusação frágil, já se vê. Como divulgou na rede X Matt Johnson, outro pesquisador célebre do ramo, não é absurdo supor que o cérebro tenha uma predisposição para a saúde mental, assim como outras partes do corpo se recuperam de traumas e feridas.
Em sua analogia, a psicoterapia apoiada por psicodélicos poderia ser comparada com médicos que limpam ferimentos de acidentados. Sem retirar a sujeira acumulada neles, o processo natural de cicatrização seria dificultado.
As ondas de choque deflagradas pela rejeição da FDA não impactaram só a Lykos e a Maps. No rescaldo da fogueira de vaidades que tomou a Psymposia, com militantes como Neşe Devenot cantando vitória contra os “corporadélicos”, apareceram também rachaduras na ONG radical: membros como David Nickles e Lily Kay Ross vieram a público dizendo que deixaram a organização.
Ross acusa a Psymposia de não ter aceitado mediação de terceiros para resolver conflitos internos, que teriam agravado traumas decorrentes de suas denúncias no campo psicodélico, do qual se afastou. Ela havia sido personagem destacada da temporada “Power Trip” do podcast Cover Story, da NY Magazine, em que narrou abusos sofridos quando usuária de psicodélicos.
Abusos, sexuais ou de qualquer tipo, na condição vulnerável de sugestionabilidade desencadeada por substâncias alteradoras da consciência, são uma coisa abjeta. Não há como justificar, em especial quando a violência é perpetrada por terapeutas, na exploração vil da ascendência que adquirem sobre pacientes.
Mas também são casos raros, tudo indica. Paradoxalmente, acabaram mobilizados para estigmatizar toda uma área de pesquisa que promete alguma perspectiva de alívio para pessoas traumatizadas –inclusive vítimas de abuso sexual.
A psicodelia passa por um verdadeiro baixo astral. Erros e tropeços do renascimento psicodélico precisam ser identificados e dissecados, decerto. Mas ninguém deveria regozijar-se com o retrocesso imposto pela FDA, menos ainda atuar como vestais coadjuvantes do imperialismo farmacológico que busca divorciá-lo do casamento feliz com a psicoterapia.
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Psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem solução para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.
Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, procure meu livro “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira”.
Não deixe de ver também as reportagens da série “A Ressurreição da Jurema”:
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/reporter-conta-experiencia-de-inalar-dmt-psicodelico-em-teste-contra-depressao.shtml
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/da-caatinga-ao-laboratorio-cientistas-investigam-efeito-antidepressivo-de-psicodelico.shtml
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/cultos-com-alucinogeno-da-jurema-florescem-no-nordeste.shtml