Foi a morte repentina do pai por Covid, em 2021, que levou a então doutoranda da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), Marcella Cardoso, a trocar a pesquisa oncológica por novos caminhos de combate às infecções virais.
No último dia 21, a agora cientista contratada pela Escola de Medicina de Harvard do Hospital Geral de Massachusetts, nos Estados Unidos, comemorava a publicação de um estudo liderado por ela na prestigiosa revista Cell, uma das mais importantes da área, revelando uma das estratégias do Sars-Cov-2 para escapar do sistema imunológico, driblando as defesas naturais do nosso corpo.
“Fomos capazes de identificar a imunovasina, responsável pela evasão viral, principalmente em pacientes que desenvolveram a forma grave da Covid e dos que acabaram indo a óbito”, explica Cardoso.
O trabalho também apresenta um novo caminho no campo da imunoterapia antiviral, com a descoberta do papel de um anticorpo específico na melhoria da capacidade das células de defesa para eliminar células infectadas com o Sars-CoV-2. No futuro, isso poderá levar a possíveis novas estratégias terapêuticas.
Essa história toda começou em fevereiro de 2021, quando o Brasil vivia um dos piores períodos da pandemia de Covid. Na época, Cardoso era aluna da Unicamp e fazia um doutorado-sanduíche em Harvard em oncologia ginecológica e mamária.
Um dia o pai, o corretor de imóveis Luiz Carlos Cardoso, telefonou para ela contando que estava com Covid. Aos 67 anos, praticante de atividades físicas e sem nenhuma comorbidade, tudo indicava que a evolução seria boa. Mas não foi o que aconteceu.
Em poucos dias, Cardoso piorou e foi internado na UTI. Sem dinheiro, ela precisou fazer uma vaquinha virtual para comprar uma passagem aérea e voltar às pressas ao país. Ao chegar, o pai já estava intubado, e ela não conseguiu mais vê-lo.
“Foi quando eu percebi uma nuance ainda mais cruel da Covid, a de não permitir que os seus entes se despedissem. Eu passei 24, 48 horas sem ter notícias dele. Teve um dia que eu consegui o telefone da UTI, implorei por notícias, pedi para saber só se ele estava vivo, e desligaram o telefone na minha cara”, diz.
O pai faleceu logo depois.
Cardoso voltou aos Estados Unidos, defendeu o seu doutorado e foi contratada pela Escola de Medicina de Harvard para trabalhar com uma pesquisa sobre imunoterapia para câncer de mama.
“Foi aí que, num passo de atrevimento, eu pedi para liderar uma pesquisa sobre a Covid. A pergunta que me impulsionava era: como um paciente que não tem comorbidade de repente, evolui para quadro grave da doença? Esse passou a ser o nosso objeto de estudo, e fizemos uma série de experimentos até achar qual era a proteína específica por causar toda essa modificação.”
“Esse paper é uma carta de amor ao meu pai, uma forma de honrá-lo, de não deixar que a sua morte e de milhares de outros brasileiros, de maneira tão cruel, tenha sido em vão”
As pistas eram sinais nas células invadidas por vírus, que acionavam o sistema imune, por meio de células conhecidas como células matadoras naturais (NK cells, na sigla em inglês), que ajudam a encontrar e matar o invasor.
Segundo a pesquisadora, as células NK possuem proteínas específicas em suas membranas, que reconhecem proteínas como a MICA/B, nas superfícies de outras células —estas, sim, infectadas pelo vírus.
Essa detecção é crucial para identificar e eliminar as células que estão abrigando o vírus. “Portanto, a interação e o reconhecimento entre as proteínas MICA/B são essenciais para a eliminação das células infectadas.”
O estudo liderado por Cardoso revela o Sars-CoV-2 pode produzir uma proteína chamada ORF6 (uma das proteínas da superfície do vírus) que remove as proteínas MICA/B da superfície de células infectadas.
Uma vez que MICA/B é responsável por sinalizar a presença do vírus nas células, a ação de ORF6 cria uma espécie de “cegueira temporária” no sistema imune, dificultando a detecção do vírus no interior das células. A observação dessa ação foi possível utilizando um anticorpo que se liga justamente a essa região celular.
“A ideia por trás disso era que, se este anticorpo se ligasse primeiro a MICA/B, não haveria espaço para a ORF6 do vírus se ligar e remover MICA/B da superfície. Em outras palavras, o 7C6 funcionaria como um ‘escudo’ contra a ação da ORF6 viral, competindo pela mesma proteína.”
Os resultados do experimento mostraram que a presença de MICA/B no soro de pacientes foi menor quando o 7C6 foi utilizado, indicando que o vírus não foi capaz de remover MICA/B das células infectadas pois 7C6 se ligou primeiro à proteína.
“Isso significa que as células matadoras naturais, cuja função é detectar e destruir células infectadas, tiveram muito mais sucesso em encontrar e eliminar essas células graças à permanência de MICA/B na superfície de células infectadas que estavam protegidas pela interação com o 7C6.”
Segundo Cardoso, os próximos passos incluem estudos pré-clínicos em modelos animais modificados para avaliar a eficácia e segurança do anticorpo em um contexto mais próximo do humano. “Embora ainda estejamos nos estágios iniciais, estamos entusiasmados com o potencial dessa nova abordagem terapêutica e comprometidos em explorar suas aplicações clínicas futuras.”
O estudo foi feito com colaboração de pesquisadores da Unicamp, que cederam amostras de sangue de pacientes coletadas durante a pandemia e que já tinham sido objeto de outras pesquisas.
Para a pesquisadora, é importante incentivar a pesquisa brasileira. “O Brasil tem pesquisadores brilhantes que só não conseguem prosperar mais ainda por falta de incentivo, de apoio financeiro. Como as amostras já existiam, foi muito mais fácil [eles] aceitarem o convite”, diz a pesquisadora, que fez graduação em ciências biológicas na Ufscar (Universidade Federal de São Carlos).
Ela conta que não teve um dia sequer durante a pesquisa que a lembrança do pai não esteve presente na bancada do laboratório. “Esse artigo é uma carta de amor ao meu pai, uma forma de honrá-lo, de não deixar que a sua morte e de milhares de outros brasileiros, de maneira tão cruel, tenha sido em vão.”