Aos 62 anos, o engenheiro sudanês-americano Elfatih Eltahir tem o costume de caminhar uma hora, todos os dias, pelos arredores de sua casa em Boston, nos Estados Unidos. Nos últimos tempos, durante o inverno, ele tem cumprido sua rotina de exercícios físicos mais confortavelmente — as manhãs de frio intenso e ventos gelados estão menos frequentes.
Eltahir percebeu mudanças também no inverno do Sudão, quando em visita à família. Lá, ao contrário do que acontece na costa nordeste americana, está ficando difícil fazer as caminhadas diárias, por causa do calor cada vez mais impiedoso.
Professor de engenharia civil e ambiental do Massachusetts Institute of Technology (MIT), Elthair transformou as observações de seus hábitos cotidianos em uma nova ferramenta para prever os impactos a longo prazo do aquecimento global na qualidade de vida de cada um de nós.
No artigo North-South disparity in impact of climate change on “outdoor days”, publicado recentemente na revista científica Journal of Climate, da American Meteorological Society, o professor e e os pós-doutorandos Yeon-Woo Choi e Muhammad Khalifa, ambos também do MIT, apresentam o conceito de “outdoor days” — ou “dias ao ar livre”.
O termo indica o período de 24 horas em que as temperaturas externas não são nem quentes nem frias demais para que as pessoas possam realizar atividades, sejam de lazer ou de trabalho, com razoável conforto.
Com base em 50 modelos climáticos, o trio de pesquisadores desenvolveu um software capaz de indicar quantos “dias ao ar livre”, por ano, cada país tem até o fim do século.
Em vez usar os parâmetros do que é tido como clima ideal, Eltahir, Choi e Khalifa criaram um mapa interativo, no qual os usuários escolhem um local e definem a faixa de temperatura que julgam agradável. Eles também indicam se preferem os resultados sob uma perspectiva mais otimista ou mais pessimista.
Até 2100, se o futuro for mais verde do que o presente, os brasileiros devem perder 43 dias ao ar livre. Se, no entanto, o mundo continuar dependente dos combustíveis fósseis, serão 81 dias a menos de temperaturas amenas. Imagine passar quase um quarto do ano com dificuldade para realizar atividades fora de casa por causa do calor…
Ao traduzir os riscos do aquecimento global em dados palpáveis, facilmente aplicáveis à nossa vida cotidiana, a régua dos dias ao ar livre facilita a comunicação (e a compreensão) dos riscos impostos pelo caos climático — o que, para alguns especialistas, pode fazer do termômetro do MIT, ferramenta efetiva de mudança de comportamento.
Claudio Angelo, coordenador de política internacional do Observatório do Clima e autor do premiado A Espiral da Morte, é um pouco mais cético.
“Uma coisa é as pessoas entenderem os efeitos do aquecimento global — e acho que elas elas vão entender. E outra é elas mudarem seu consumo e suas emissões individuais de gases de efeito estufa”, diz Angelo, em conversa como NeoFeed. “As mudanças de comportamento têm de vir de governo, de regulação. De cima para baixo.”
Xô, complicação e homogeneidade
Baseadas em médias globais, as informações sobre as mudanças climáticas sempre foram muito complicadas — ao menos, para a imensa maioria de nós, leigos.
Será que alguém se sente realmente compelido a agir contra o colapso ambiental ao saber que é preciso limitar o aumento da temperatura da Terra a 1,5º C, em relação aos níveis pré-industriais? Ou que é urgente cortar 45% das emissões de gases de efeito estufa até 2030, para zerar as emissões de carbono em 2050?
“É difícil mesmo e essa é uma das razões pelas quais ninguém fez nada ainda”, afirma Angelo. “Até porque 1,5º C parece pouco, né? As variações cotidianas de temperatura são dez vezes maiores.” O que não torna o aumento de 1,5º C menos real, frisa o especialista.
País por país, a nova ferramenta também permite a visualização concreta de quão desiguais são os impactos da crise climática. Os mapas tradicionais tendem a mostrar o aquecimento global como um fenômeno homogêneo.
“Se, no entanto, pensarmos em termos de dias ao ar livre, veremos que as variações de temperatura não são uniformes”, diz Eltahir, à plataforma MIT News.
No desequilíbrio, as populações mais suscetíveis ao aquecimento global estão no chamado Sul global — as nações mais pobres e aquelas em desenvolvimento.
A inequidade se explica pela conjunção de dois fatores. A primeira é de ordem econômica. As populações do países ricos têm, em média, mais condições de se adaptar às mudanças impostas pelo estresse térmico.
O outro motivo é, como define o coordenador do Observatório do Clima, uma “infeliz coincidência da geografia”. Em sua maioria, as economias mais fortes estão em altitudes mais elevadas.
Até o fim do século, nos melhores cenários, a Índia, por exemplo, perde 30 dias ao ar livre. A Colômbia, 36, e o Sudão, 26. Da Indonésia, por sua vez, deve-se subtrair 64.
Por outro lado, nos próximos 76 anos, a Noruega deve ter 63 dias a mais de clima agradável, o Reino Unido, 31, e a França, 18.
Vitória de Pirro
Em um primeiro momento, a calculadora do MIT pode passar a falsa impressão de que alguns países estão em situação mais favorável do que outros. Não é nada disso. No jogo do aquecimento global, não há vencedores.
A Rússia, por exemplo, o maior exportador de trigo do mundo. Com grande parte de seu território no frio, o país ganha área agrícola, conforme as temperaturas se elevam.
Mas de que adianta os russos aumentarem a produção do cereal, enquanto o resto do mundo derrete sob os efeitos do aquecimento do planeta? “As cadeias globais de comércio estão conectadas”, diz Angelo.
Se as chuvas no sul do Brasil diminuem a expectativa de produtividade do milho, a Rússia será impactada. Outro exemplo: os incêndios catastróficos que atingiram o país em 2010 foram consequência da degradação ambiental imposta ao planeta como um todo.
“Alguns países podem até ganhar dias ao ar livre, mas os ganhos não são absolutos”, afirma ele. “É uma vitória de Pirro.”
Não custa lembrar a hipótese de Gaia, proposta em 1979, pelo cientista inglês James Lovelock (1919-2022). A Terra é um enorme organismo vivo, cuja vida controla a própria vida, pela interação entre os elementos que o compõem.
Como tudo funciona em feedback, se um perde, todos perdemos. E a conta pela degradação ambiental, mais cedo ou mais tarde, chega — para todo mundo, como já está chegando.
A Europa serve de paradigma para o inevitável “perde-perde” do aquecimento global. No mapa-múndi da crise climática, o continente parece mais protegido, mas uma lupa sobre a região revela que nenhuma economia está a salvo.
O impacto do aquecimento global se faz muito evidente na indústria do turismo. Por causa do aumento das temperaturas, os destinos europeus já registram alterações importantes nos padrões de viagens.
Em busca de neve, os turistas de inverno sobem às estações mais altas. Fugindo do calor escaldante, os viajantes de verão correm para as cidades de clima temperado — que já não é nem mais temperado assim.
“Houve uma queda de 10% no número de pessoas que planejam visitar o Mediterrâneo, entre junho e novembro”, lê-se no relatório Rising global temperatures ar alredy affecting the toruism Industry — here’s how, do Fórum Econômico Mundial (WEF, na sigla em inglês).
E o relatório completa, citando dados da Comissão Europeia de Viagens: “Os turistas estão considerando ir para a República Checa, Dinamarca, Irlanda e Bulgária.”
Como alerta o WEF, nos próximos anos, o sucesso das empresas e destinos turísticos estará cada vez mais ligado à sua capacidade de gerir e operar sob as ameaças climáticas.
Ferramentas, como a plataforma dos dias ao ar livre, podem ajudar no planejamento não só do futuro do turismo, mas também dos sistemas agroalimentares, das cidades, dos transportes… da humanidade, enfim.