Ennui, a emoção “blasé” do filme “Divertida Mente 2”, reacende o debate sobre tédio e mídias digitais

Ennui, a emoção


Letárgica e indiferente, ela está sempre largada no sofá. Raras situações são interessantes o bastante para fazê-la desviar a atenção do celular. E, quando se digna a levantar a cabeça, revira os olhos, boceja e responde com piadas sarcásticas e críticas ácidas; quando não, com irritação.

Seu nome vem do francês — Ennui, tédio. E ela é uma das quatro novas emoções do filme Divertida Mente 2, em cartaz nos cinemas brasileiros. Junto com a Ansiedade, a Vergonha e a Inveja, marca a chegada da menina Riley à adolescência.

Com a silhueta inspirada em um fio de espaguete amolecido, moletom e meias, fisionomia e postura de quem está profundamente aborrecida, a personagem da Pixar reacende o debate sobre a relação entre o tédio e as mídias digitais — e vice-versa.

E uma das vozes mais ativas da nova ciência sobre o sentir-se enfadado é Tina Kendall, professora associada de cinema, mídias e estudos da comunicação na Universidade Anglia Ruskin, em Cambridge, na Inglaterra, e PhD em teoria da crítica pela Universidade da Califórnia, em Davis, nos Estados Unidos.

“Embora o entretenimento em rede seja amplamente promovido como uma ‘cura’ para o tédio, as últimas pesquisas mostram que quanto mais usamos essas tecnologias para nos distrairmos, mais entediados corremos o risco de ficar”, diz ela, em conversa com o NeoFeed. “É o tédio que alimenta e sustenta nosso envolvimento com essas plataformas e aplicativos.”

Não à toa Ennui vive grudada em seu smartphone.

Enquanto todas as outras emoções devem ir até o “centro de comando”, instalado no cérebro de Riley, a apática Ennui, com o dom de não dar a mínima, faz tudo de seu aparelho, rolando o feed sem parar.

“O tédio prospera com a repetição”, defende Tina. “A estimulação da repetição pode criar um ciclo de feedback negativo de tédio cada vez mais superficial — uma forma de tédio que continua ressurgindo, mas, que nunca cria raízes o suficiente para ‘amadurecer’ em reflexão ativa.”

Apesar de sua atitude blasé (e por causa dela), Ennui protege Riley. Ajuda a baixar a intensidade (sempre elevada) das emoções típicas da vida aos 13 anos. E procura manter a adolescente distante de tudo o que não vale seu tempo e sua energia ou que possa lhe causar embaraço — inclusive de seus pais.

“O paradoxo é que, embora o entretenimento em rede seja amplamente promovido como uma “cura” para o tédio, o tédio permeia toda a cultura digital”, diz a professora Tina Kendall

No livro “Out of My Skull: The Psychology of Boredom”, de 2020, os psicólogos John Eastwood e James Danckert defendem que o tédio serve como uma espécie de alerta de que o que quer que estejamos fazendo não está funcionando. Que estamos falhando em satisfazer nossa necessidade psicológica básica de nos sentirmos engajados e eficazes (Reprodução psychwire.com e jamesdanckert.com)

O psicanalista britânico Adam Phillips classifica o tédio como “aquele estado de animação suspensa em que as coisas começam e nada começa, o clima de inquietação que contém o desejo mais absurdo e paradoxal, o desejo de um desejo” (Reprodução thebrick.keble.net)

A escritora e ensaísta americana Susan Sontag (1933-2004) defendia: “A vida de uma pessoa criativa é conduzida e controlada pelo tédio. Evitá-lo é um dos objetivos mais vitais para nós” (Reprodução britannica.com)

Para o poeta português Fernando Pessoa (1888-1935), “não é o tédio a doença do aborrecimento de nada ter que fazer, mas a doença maior de se sentir que não vale a pena fazer nada (Reprodução wikimidia.org)

Como um dos primeiros pensadores a refletir sobre a vida moderna, o sociólogo alemão Georg Simmel (1858-1918), dizia que o tédio não era uma “questão pessoal, mas um sintoma moderno, enraizado na industrialização” e que a atitude “blasé” funcionava como uma espécie de proteção contra o frenesi da vida na cidade (Reprodução ringmar.net)

“Não admira, pois, que o mundo vá de mal a pior e que os males aumentem cada vez mais (…) o tédio é a raiz de todo o mal (…) Os deuses estavam entediados, pelo que criaram o homem. Adão estava entediado por estar sozinho, e por isso foi criada Eva. Assim o tédio entrou no mundo e aumentou na proporção do aumento da população”, defendia o filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard, no século 19 (Reprodução wikimidia.org)

No filme da Pixar, a atriz francesa Adèle Exarchoupolos, de 31 anos, dubla Ennui, para dar ao tédio um ar mais “cool” (Reprodução Instagram @adèleexarchoupolos)

O homem antigo não se entediava — talvez, a nobreza e o clero, em momentos muito específicos, deflagrados por causas evidentes. O tédio existencial, aquele “de se sentir que não vale a pena fazer nada”, como definia o poeta português Fernando Pessoa… esse tédio nasce como conceito no início do século 19, na efervescência das descobertas e invenções que embasariam os avanços tecnológicos do século 20.

Desde então, pensadores de todas as áreas do conhecimento debatem o papel do sentimento no desenvolvimento humano (veja nas imagens acima o que alguns deles disseram a respeito do tema).  A crença predominante hoje em dia é a de que o tédio pode ser tanto positivo quanto negativo.

E aqui a definição do psicanalista britânico Adam Phillips dá a dimensão das possibilidades abertas por “aquele estado de ânimo suspenso (…) o clima de inquietação difusa que contém o desejo mais absurdo e paradoxal, o desejo de um desejo”.

O “desejo de um desejo” que não sabemos qual é e muito menos como satisfazê-lo.

“O tédio pode levar a comportamentos prejudiciais, como a ‘rolagem compulsiva’ das telas e o tempo perdido nessa atividade, ou servir como um apelo à ação, para que nos engajemos mais ou para que tentemos algo diferente”, diz Tina.

Veja a seguir, os principais trechos da entrevista da pesquisadora da Universidade Anglia Ruskin ao NeoFeed:

Como o tédio modula o conteúdo e o uso das novas mídias?
Na minha próxima monografia, Entertained or Else: Boredom and Networked Media, a ser publicada em 2025, avalio como o tédio vem sendo cada vez mais instrumentalizado para impulsionar o envolvimento das pessoas com o entretenimento em rede. Foco, sobretudo, em como o tédio foi direcionado em dois níveis: o discursivo e o técnico.

Como se dá o nível discursivo?
A cultura de rede coloca o tédio como uma ameaça oculta e apresenta o streaming de entretenimento e as plataformas de mídia social como ferramentas para ajudar os indivíduos a “administrar” o “problema do tédio”. Constantemente nos informam que, se baixarmos o software e os aplicativos certos e se seguirmos os feeds indicados, nunca mais ficaremos entediados.

E o que acontece do ponto de vista técnico?
Essas plataformas e programas foram projetados para automatizar nossos gestos — para que cliquemos ou deslizemos as telas antes que tenhamos tempo de perceber que estamos entediados. O tempo necessário entre o tédio se transformar em uma reflexão consciente e a tomada de decisão tem sido significativamente reduzido.

Ou seja, quanto mais entediados nós nos sentimos, melhor para as empresas de tecnologia.
Claro! O paradoxo é que, embora o entretenimento em rede seja amplamente promovido como uma “cura” para o tédio, o tédio permeia toda a cultura digital. O tédio é o sentimento que alimenta e sustenta nosso envolvimento com as plataformas e os aplicativos, nos entediando ainda mais e produzindo receita para as corporações de mídia social e de streaming.

Você pode dar um exemplo de como esse processo funciona na prática?
Veja o que aconteceu durante a pandemia do novo coronavírus. O TikTok capitalizou explicitamente a ameaça do tédio durante o isolamento social — o que alimentou a ascensão meteórica da plataforma. Com o desafio #BoredInTheHouse, o TikTok conseguiu consolidar uma conexão forte com os usuários. O tédio foi e é até hoje um fator chave no sucesso da plataforma.

Devemos levar o tédio a sério, como um instrumento para nos abrirmos a novos desejos, novas experiência e novos futuros

Como o entretenimento em rede aumenta ainda mais o tédio?
O tédio prospera com a repetição. Veja, para sair do tédio, é preciso uma mudança, algo novo que nos faça pensar, ser ou fazer de modo diferente. A estimulação da repetição pode criar um
ciclo de feedback negativo de tédio cada vez mais superficial — uma forma de tédio que continua ressurgindo, mas, que nunca cria raízes o suficiente para “amadurecer” em reflexão ativa. O tédio está, portanto, ligado a experiências mais amplas daquilo que Tung-Hui Hu [escritor americano] chama “letargia digital”: sentimentos de exaustão, decepção, falta de objetivo e dissociação que as plataformas digitais podem produzir.

Mas, afinal, quais são especificamente os perigos do tédio?
Todos nós sentimos tédio em nossas vidas cotidianas. Muitas vezes vivenciamos esse sentimento como uma experiência desagradável — não saber o que fazer ou não poder fazer o que queremos nos dá a sensação de que estamos presos no momento. O tédio crônico, porém, pode se transformar em um problema sério. Os estudos mais recentes sugerem uma forte correlação entre a tendência ao tédio e os comportamentos de risco, como o vício em jogos de azar.

E quais são os aspectos positivos?
O tédio desempenha um papel importante em nosso desenvolvimento, nos dando o tempo necessário para descobrirmos o que desejamos e o espaço para experimentemos fazer as coisas de outra forma. Por isso, o tédio é apontado por muitos como a porta de entrada para a criatividade. Devemos levá-lo a sério, como um instrumento para nos abrirmos a novos desejos, novas experiências e novos futuros. É muito fácil presumir que as tecnologias digitais colonizaram completamente o tempo e o espaço que costumávamos ter para o tédio. Meu trabalho tenta mostrar como os sentimentos de tédio se relacionam com as mídias sociais, nem todas negativas.

Não?
Um método que eu costumo adotar é rastrear hashtags e descritores com temas relacionados ao tédio em plataformas de mídia social, como YouTube e TikTok. E, olhando para os comportamentos e expressões que essas hashtags incentivam, vemos como o tédio pode de fato encorajar as pessoas a experimentar criativamente novas formas de fazer, ser e viver —mesmo que essas mudanças sejam fortemente influenciadas pelas tendências e normas das plataformas. Os tutoriais do Youtube sobre “o que que fazer quando você está entediado”, por exemplo. Graças a iniciativas como essa, foram criados espaços de intimidade e solidariedade para que os jovens compartilhem seus desejos e frustrações.

Como você avalia o sotaque francês da personagem Ennui, em Divertida Mente 2?
Também acho curioso! Tem havido muita discussão em fóruns da internet sobre porque Ennui tem sotaque francês. Claramente a escolha da atriz francesa Adèle Exarchoupolos, para dublar a personagem, segue a decisão da Pixar de usar a palavra “ennui” em vez do termo em inglês “boredom”. A palavra francesa carrega conotações de cansaço e aborrecimento com o mundo. O termo em francês tem ainda uma espécie de prestígio cultural. Ennui  exala o que os franceses chamam de “je m’em foutisme”, a arte de não dar a mínima. E essa indiferença, digamos, cool, ajuda a modular as outras emoções da adolescente, estabelecendo, quando necessário, uma distância entre ela e o mundo.





Fonte: NeoFeed

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