Charles Esler passou mais de 50 anos vivendo confinado em um hospital, apesar de não estar gravemente doente.
Com dificuldade de aprendizagem leve e epilepsia, ele foi levado ao hospital pela primeira vez quando tinha dez anos.
Charles disse à BBC Scotland News, serviço de notícias da BBC na Escócia, que passou anos demais em hospitais —e que não gostava de ficar trancado, sem liberdade.
Sua irmã, Margo McKeever, conta que lutou para que Charles fosse transferido para um lugar em que pudesse ser independente —e no ano passado, aos 62 anos, ele finalmente pegou as chaves do seu próprio apartamento pela primeira vez.
“A família lutou durante anos para encontrar um lugar adequado para ele”, afirma David Fleming, da instituição beneficente Richmond Fellowship Scotland.
“Infelizmente algumas pessoas ficam presas no sistema.”
Uma investigação da BBC Scotland descobriu que centenas de pessoas com dificuldade de aprendizagem ainda estão confinadas em hospitais ou vivendo a centenas de quilômetros de suas famílias.
Isso acontece apesar de décadas de políticas governamentais terem deixado claro que todos os pacientes deveriam ser transferidos das instituições de longa permanência para suas próprias casas.
Há dois anos e meio, o governo escocês prometeu transferir a “maioria” das pessoas para suas próprias moradias até março de 2024.
No entanto, novos dados obtidos pela BBC mostram que o número de pessoas internadas aumentou.
Uma consulta feita com base na lei de acesso à informação mostrou que o número de pessoas com dificuldades de aprendizagem hospitalizadas aumentou de 173 para 191 desde o verão passado.
Os números gerais do novo registro nacional —que inclui pessoas que estão longe de casa— subiram 12%, de 1.243 para 1.398.
Os cuidadores de Charles acreditam que seu caso provou que todos podem ser apoiados para viver em comunidade.
“Ele foi incrível durante a transição, e está prosperando, está bastante independente agora”, declara Fleming.
Charles, que cresceu em Glasgow, comemora:
“Posso sair agora e ir a alguns lugares, ir ao pub no fim da rua e almoçar lá. Gosto de fish and chips [peixe e fritas, prato típico do Reino Unido].“
“É uma sensação boa. Nunca tive liberdade antes.”
Ele diz ainda que adora sentar na sala de casa e assistir a filmes de James Bond. Também está aprendendo a cozinhar, a jardinar e a fazer faxina sozinho.
Sua irmã Margo conta que o comportamento do irmão havia sido muitas vezes desafiador quando ele era criança —e seus pais foram aconselhados a interná-lo.
Segundo ela, os médicos tiveram dificuldade de acertar a medicação para epilepsia de Charles.
McKeever lutou durante anos para conseguir que o irmão tivesse sua própria casa.
“Não pense que esta é uma história de conto de fadas”, ela adverte.
“Este processo não aconteceu da noite para o dia. Teve muita gente envolvida, e demorou cerca de 14 anos para encontrar o lugar certo.”
“Todo mundo deveria ter alguém capaz de garantir que não seja apenas um número”, completa.
Fraser Malcolm vive no hospital há mais de três anos, apesar de haver um consenso de que ele está pronto para sair.
O jovem de 20 anos, natural de West Kilbride, em North Ayrshire, tem problemas de fala e necessidades complexas, mas antes de ir para o hospital, seus pais dizem que ele tinha uma vida plena.
Ele frequentava uma escola especial, velejava regularmente, viajava de férias com a família, e estava ajudando o pai a reformar um barco à vela.
Os pais dele afirmam que seu maior erro foi “pedir ajuda”.
A mãe de Fraser, Karen, conta que o filho piorou desde que foi internado —e que o medo de ser contido no hospital “está simplesmente destruindo a pessoa que ele já foi”.
Ela diz estar “absolutamente indignada” com o fato de o número de pessoas com dificuldade de aprendizagem ter aumentado desde que o governo prometeu levar as pessoas para casa.
“Foi um golpe que atingiu nossa família e muitas outras famílias com quem tenho contato agora”, afirma. “Está destruindo cada um de nós.”
A família de Fraser montou um quarto especialmente adaptado para ele —e quer que ele volte para casa, mas diz que ele piorou tanto no hospital que ficou com medo de sair do quarto.
Assim como acontece com muitas famílias, eles estão com dificuldade de encontrar um sistema de cuidados adequado e chegar a um acordo sobre a transição após o hospital.
Um porta-voz da instituição North Ayrshire Health and Social Care Partnership diz que eles continuarão a trabalhar com Fraser e sua família para ele obter alta hospitalar.
“Há desafios contínuos em nível local e em toda a Escócia em termos de capacidade, disponibilidade e variedade de opções de cuidados comunitários para indivíduos com necessidades de apoio complexas”, declarou.
Uma porta-voz da Health and Social Care Partnership de Glasgow diz que foi um passo importante para Charles se mudar para sua própria casa.
“Continuamos a trabalhar arduamente para apoiar outros indivíduos, como Charles, com necessidades de apoio complexas, a sair do hospital para a acomodação certa na comunidade”, diz ela.
Consultas separadas com base na lei de acesso à informação feitas pela BBC Scotland News a todos os conselhos de saúde da Escócia revelaram que mais de 120 pessoas com dificuldades de aprendizagem estavam hospitalizadas há mais de um ano.
Isso inclui 28 que estão internadas há mais de dez anos —e quatro que passaram mais de 20 anos no hospital.
Há dois anos, o programa Disclosure, da BBC, descobriu que pessoas com dificuldade de aprendizagem estavam confinadas em hospitais.
Dos jovens apresentados no programa, incluindo Fraser Malcolm, todos ainda vivem confinados em unidades hospitalares.
Kyle Gibbon, agora com 37 anos, mora no State Hospital, em Carstairs, há 15 anos.
Jamie, hoje com 26 anos, vive no Woodlands View Hospital, na região de Ayrshire e Arran. Ele está lá desde os 19 anos, e seu registro consta como alta postergada.
Já Louis Sainsbury está prosperando em sua casa em Perthshire, depois de anos hospitalizado.
Milhares de pessoas com dificuldade de aprendizagem viviam em hospitais de longa permanência antes da década de 1990, quando foi estabelecido que isso era desumano.
O governo escocês publicou um informe em 2000, estabelecendo o direito de todas as pessoas com dificuldade de aprendizagem viverem em suas próprias casas e comunidades.
Os especialistas dizem que é absolutamente possível que todos vivam na sua própria casa com o apoio adequado.
“Fechamos hospitais de longa permanência há cerca de 20 anos com a crença de que sabíamos que as pessoas poderiam viver em comunidade”, diz Sam Smith, diretor da C-Change Scotland, uma organização que apoia pessoas com deficiência a viverem em casa.
O governo escocês diz que tem trabalhado com as autoridades locais para criar um registro nacional de pessoas com dificuldade de aprendizagem no hospital e a centenas de quilômetros de casa, e destinou 20 milhões de libras esterlinas (R$ 127 milhões) em financiamento para ajudar a transferir as pessoas para suas próprias casas.
“Estamos totalmente determinados a avançar nesta questão”, disse a ministra de assistência social, Maree Todd, à BBC Scotland News.
“Mas, como esta informação mostra, é algo difícil de resolver.”
“A responsabilidade legal recai sobre as autoridades locais, e estou trabalhando de perto com as autoridades locais para tentar melhorar a situação.”
Este texto foi publicado originalmente aqui.