Poucos sistemas públicos são tão difundidos no Brasil quanto o SUS (Sistema Único de Saúde), criado pela Lei 8080/1990, em 1990.
Principalmente durante o período da pandemia, quando houve um desmonte do Ministério da Saúde pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), pipocaram cartas de defesa do maior sistema de saúde pública do mundo, louvando suas conquistas —como o programa de transplante de órgãos, o de controle do HIV/Aids e o de vacinação—, mas também chamando atenção para pontos passíveis de críticas, como as falhas no atendimento.
Mas a história da criação do SUS ainda é pouco conhecida pela sociedade.
Foi com esse desafio em mente que o jornalista Clóvis Bulcão e o médico Luiz Antonio Santini, especializado em cirurgia torácica e ex-diretor do Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social) e do Inca (Instituto Nacional do Câncer), decidiram narrar essa história –que é também de lutas e conquistas do partido sanitarista brasileiro, em paralelo ao processo de redemocratização.
“Esse é um ponto central, quando comecei a pensar sobre a evolução da saúde no Brasil, porque temos todo um histórico [da saúde pública] desde o período do Brasil Colônia até os dias de hoje”, diz Santini.
Na verdade, a construção do SUS contou com três momentos importantes da história recente do país, segundo ele. O primeiro foi no início do século 20, quando a cidade do Rio de Janeiro ainda era a capital nacional, dos primeiros movimentos sanitaristas, liderados por Oswaldo Cruz, para erradicar doenças infecciosas que explodiram na cidade na época, como febre amarela e peste bubônica.
“É interessante porque, mesmo naquela época, teve o episódio conhecido como Revolta da Vacina, em que houve uma enorme rejeição à vacinação contra febre amarela, mas algum tempo depois as pessoas passaram a buscar os centros de vacinação. Também houve muita desinformação [como foi durante a Covid]”, lembra.
O segundo momento foi a criação, já nos anos 1930 e 1940, dos institutos médicos para previdenciários, ligados ao Inamps. “Nesse período, só tinha direito à saúde quem era previdenciário ou tinha carteira assinada, e as pessoas —inclusive trabalhadores liberais— eram consideradas como indigentes, muitas morriam na porta de hospitais. Era um horror”, conta o médico.
Essa trajetória é realçada no livro para mostrar como a luta por uma saúde pública era, também, politizada. “Essa foi uma conquista da democracia, que continua até hoje, não é um processo acabado”, afirma Santini.
O terceiro momento citado no livro acompanha as mudanças feitas no currículo de medicina no país, por volta dos anos 1960, a partir de um movimento sanitarista que vinha crescendo no Brasil e em outros países da América Latina.
Por aqui, os sanitaristas se opunham à ditadura militar, tentando lançar candidatos próprios na luta pela redemocratização. “É aí que a luta pela construção do SUS, que coincide ou não com a redemocratização, foi uma briga política”, lembra Bulcão.
O livro contém entrevistas com diversos dos atores políticos que atuaram na Constituinte e na inclusão do sistema de saúde pública como um direito inequívoco a todos os cidadãos. O jornalista destaca que esse processo contou com a participação de políticos de todos os espectros ideológicos, principalmente pelo centrão.
“Naquela época, o centrão comprou a ideia [de criação do SUS] e ajudou na construção do projeto. Hoje, vemos de novo a necessidade de uma luta pela redemocratização, não propriamente dita, mas pela manutenção do estado democrático de direito no Brasil, visto a tentativa de golpe sofrida recentemente, e o centrão se posiciona sem nenhuma direção política clara, é uma massa frouxa, com interesses próprios”, lamenta.
Outro ponto de destaque do livro é a história do movimento na década de 1980, ainda antes da criação do SUS, no combate à Aids, iniciado também por uma necessidade que o país viu de regular os bancos de sangue, focos de infecção e transmissão generalizada do vírus.
“O Brasil estava em uma situação de grave problema de saúde pública quando a Aids começou, e a maneira como o país enfrentou [a epidemia] virou um parâmetro internacional, A luta dos ativistas, do Betinho, dos sanitaristas, provocou essa gigantesca transformação. E quem conhece essa história vai defender o sistema”, diz Bulcão.
Por fim, os autores lembram o período da pandemia e os desafios futuros para o SUS, sendo o principal o subfinanciamento e a necessidade de se inserir em um mundo cada vez mais tecnológico com rapidez e acesso a todos.
“Passada a pandemia, que teve um processo de destruição pelo governo anterior que era negacionista da ciência, voltam as dificuldades comuns do sistema, e a principal delas é o acesso às coisas menos complexas, é o represamento da assistência”, afirma Santini.
“Nós vemos que, no país, quem usa o SUS defende o SUS. Por isso, a intenção do livro foi dialogar com todo mundo, não só um público científico, mas toda a sociedade. Agora, temos uma abertura, será que vamos conseguir mobilizar a sociedade em defesa da transformação e do aperfeiçoamento do SUS?”, finaliza Bulcão.