A aprovação do projeto de lei Combustível do Futuro pelo Congresso Nacional deverá colocar o Brasil num papel de destaque no mercado global de biocombustíveis, criando segurança jurídica para destravar cerca de R$ 200 bilhões em investimentos no País, de acordo com estimativa do Ministério das Minas e Energia.
Além de consolidar a integração do agronegócio com o setor energético do País, a criação de um marco legal para os biocombustíveis, previsto no Programa Combustível do Futuro do governo federal que inspirou o PL aprovado na quarta-feira, 11 de setembro, deve acelerar novos modelos de negócios que estão sendo estruturados a partir de matérias-primas renováveis – como óleo de cozinha usado, gordura animal, lodo de esgoto, palmeira de dendê e macaúba, entre outras.
O marco legal define mandatos de descarbonização da aviação, com o chamado combustível sustentável de aviação (SAF, na sigla em inglês), inserção do HVO (diesel verde) na matriz de transportes pesados a partir de 2027 e a previsão para que o biometano passe a substituir o consumo de gás natural no País, além da exploração da biomassa.
O texto-base aprovado também ampliou as misturas volumétricas de etanol na gasolina e biodiesel no diesel. A mistura do etanol na gasolina, por exemplo, deve ser de 27%, mas por meio de acordo, o Poder Executivo poderá reduzir a mistura do etanol para até 22% ou aumentar para até 35% na sanção da lei.
Quanto ao biodiesel, que é misturado ao diesel de origem fóssil em 14% desde março deste ano, poderá ser acrescido um ponto percentual de mistura anualmente a partir de março de 2025 até atingir 20% em março de 2030. Um “jabuti” incluído no Senado, que estendia de 12 para 30 meses o prazo para que minigeradores de energia solar possam concluir as instalações de painéis e obterem subsídios nas suas contas, foi retirado do PL na votação da Câmara.
“Com a aprovação da lei, começa uma nova jornada para bioenergia no Brasil”, afirma o empresário Erasmo Carlos Battistella, CEO da Be8, líder nacional no setor de biodiesel, respondendo por 10,9% da comercialização do biocombustível no País.
“O Brasil tem muita área agriculturável para ser explorada em segunda safra e regiões a serem recuperadas em áreas degradas para aumentar a produção de matéria-prima – que é ponto-chave quando se fala em bioenergia e biocombustíveis, em especial biodiesel e etanol”, emenda Battistella, que participou do AgroSummit, evento do Bradesco BBI realizado horas antes da aprovação do projeto de lei do marco regulatório.
Marcos Fava Neves, professor da FGV-EAESP e especialista em biocombustíveis, prevê um grande fluxo de investimentos, principalmente em etanol – de cana de açúcar e de milho – e, na sequência, em biodiesel. “O etanol é uma fonte importante para o SAF e também ocupa papel relevante na mistura com a gasolina, e para misturas com outros combustíveis que estão sendo testados”, afirma Neves.
Etanol na frente
O avanço do etanol – pioneiro nos biocombustíveis no País com a criação dos carros flex, décadas atrás – é um exemplo dos novos negócios que estão surgindo.
Além do etanol de segunda geração, que tem uma pegada de carbono 30% menor quando comparado ao de primeira geração, o Brasil começou a desenvolver etanol de milho como alternativa ao etanol de cana como combustível de carros flex. Isso vem ocorrendo em regiões do País onde o preço na bomba do etanol de cana não é competitivo, como no Norte e Nordeste.
Na sexta-feira, 13 de setembro, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) anunciou a aprovação de financiamento de R$ 500 milhões para a ampliação da capacidade produtiva da FS, que atua no setor de etanol de milho em Mato Grosso. O financiamento, via Fundo Clima, visa a instalar uma nova unidade em Querência (a cerca de 760 km de Cuiabá). A FS dispõe de capacidade para produzir 2,3 bilhões de litros de etanol por ano.
Ricardo Mussa, CEO da Raízen – referência global em bioenergia, fruto de uma joint-venture da Cosan com a Shell -, destaca o avanço do etanol de cana na descarbonização da indústria. Há quatro anos, diz, 30% do etanol produzido pela Raízen era para uso industrial, em especial para indústria química e de polímeros.
“Hoje, 70% do etanol é industrial e exportado, pois é ótimo para quebrar a cadeia carbônica de produtos químicos e tem prêmio elevado no mercado externo”, diz Mussa, que participou ao lado de Battistella de um painel do evento do Bradesco BBI.
Em outra frente, a Be8 iniciou a construção da primeira usina de etanol produzido a partir de cereais de inverno, como o trigo e o triticale. A empresa, que atualmente já produz biodiesel a partir da soja, quer iniciar as produções de etanol e de glúten vital em 2026, com investimentos que se aproximam de R$ 1 bilhão.
Outro biocombustível que deve deslanchar com a aprovação do marco regulatório do setor é o de aviação, conhecido pela sigla SAF.
Como o segmento não pode fazer a transição energética no curto prazo por meio da eletrificação, os biocombustíveis utilizados para produzir SAF – a partir de matérias-primas renováveis, como bagaço de cana, óleo de cozinha usado e gordura animal – são uma solução.
Uma exigência da Organização da Aviação Civil Internacional (OACI, na sigla em inglês), agência da ONU responsável pelo desenvolvimento do setor, favorece o Brasil, atualmente o segundo maior produtor, atrás dos EUA.
A norma proíbe a produção dos biocombustíveis feitos a partir de insumos ligados ao desmatamento. Como o Brasil tem aproximadamente 40 milhões de hectares de terras degradadas, leva uma nítida vantagem em relação a muitos países.
Os projetos e pesquisas para desenvolver SAF e também diesel verde a partir de matérias-primas distintas – como palmeira de dendê, macaúba, cana, eucalipto, soja, milho e agave (planta usada na produção de tequila) – se multiplicam no País.
A Sanepar, empresa de saneamento do Paraná, analisa produzir combustível de aviação partir de lodo de esgoto, em parceria com as empresas britânicas Firefly Green Fuels e Green Fuels Research.
Já a Acelen Renováveis, empresa de energia do fundo Mubadala, dos Emirados Árabes Unidos, pretende investir R$ 12 bilhões até 2033 na refinaria de Mataripe (BA) para produção de 1 bilhão de litros de SAF para aviação e HVO para substituir o diesel em caminhões. A Acelen faz experimentos para usar o óleo extraído da macaúba como matéria-prima.
Mas há uma série de armadilhas para o País no caminho. Mussa, da Raízen, lembra que os governos dos Estados Unidos e da União Europeia criaram políticas públicas para atrair investimentos em biocombustíveis.
“Por causa desses incentivos, exportamos etanol para os EUA, que produzem SAF e de lá exportam para a Europa”, diz, lembrando que cada 1,7 litro de etanol produz 1 litro de SAF. “Para fazer SAF aqui, precisamos de política pública e quebrar a inércia, porque é mais caro no começo, e o Brasil tem condições de atender a oferta, o mercado global é crescente e gigantesco.”
Biometano e biomassa
O marco dos biocombustíveis também deve acelerar investimentos na produção de biometano, apesar da oposição de produtores e importadores de gás natural à nova lei, que os obriga a comprovar, anualmente, a compra ou consumo de uma quantidade mínima de biometano em relação ao volume de gás natural que vendem ou consomem.
O setor de biomassa, por sua vez, tem potencial de expandir como catalisador do excesso de energia elétrica produzidas pelas fontes solar e eólica, ambas intermitentes. Segundo Mussa, a biomassa produzida a partir de etanol funciona como uma bateria.
“A vantagem em relação ao painel solar é que quando transforma energia do sol em biomassa, a bateria está lá”, diz o CEO da Raízen. “Ou seja, é possível transformar biomassa em combustível líquido, para exportar energia.”
Battistella adverte que é preciso ficar atento à regulamentação do novo marco dos biocombustíveis para evitar que o nosso arcabouço seja diferente dos de outros países. Ele cita a certificação de matérias-primas – em alguns países, por exemplo, o etanol de milho não é aceito. “Precisamos fugir do risco de ser apenas um produtor de matéria-prima, precisamos desenvolver a cadeia inteira aqui”, adverte Battistella.
Para Neves, da FGV, porém, a aprovação do marco legal tem alcance histórico: “Os investimentos vão ocorrer, com interiorização do desenvolvimento de biocombustíveis graças ao agronegócio, com criação de empregos e tecnologia e, cada vez mais, empoderamento energético do País, o que vai nos libertar da dependência do petróleo.”