O governo do Piauí comemorou com um sentimento de alívio o resultado do leilão de concessão dos serviços de água e esgoto realizado nesta quarta-feira, 30 de outubro, na B3, e vencido pela Aegea. O projeto prevê R$ 8,6 bilhões de investimentos ao longo de 35 anos e abrange todos os 222 municípios do interior do estado.
O certame, com apenas um concorrente, porém, passou longe de ser considerado um sucesso – a empresa, que já detinha a concessão da área urbana da capital, Teresina, ofereceu desconto de apenas 1% sobre a tarifa a ser cobrada e o valor mínimo da outorga, de R$ 1 bilhão.
O resultado tímido do leilão reflete uma série de problemas enfrentados este ano pela gestão do governador Rafael Fonteles (PT), que deixaram os investidores ressabiados e suscitaram temores de insegurança jurídica em um estado que era referência em parcerias público-privadas (PPPs) e aberto a investimentos.
Na apresentação do projeto a investidores, no primeiro semestre deste ano, mais de dez empresas estudaram a concessão. Mas a primeira tentativa de leilão de saneamento, marcada para agosto, foi cancelada por falta de interessados.
As possíveis concorrentes desistiram por conta da modelagem preparada pelo governo, que exigia pagamento integral do valor de outorga antes da assinatura do contrato de concessão, cujo lance mínimo era de R$ 1 bilhão.
Para evitar um novo fiasco, o governo mexeu no edital, determinando que o pagamento do valor de outorga seria diluído em um prazo mais longo. No novo modelo, 25% do valor da outorga será paga como condição precedente da assinatura do contrato, 25% quando o concessionário assumir a operação, e o restante em parcelas anuais no prazo de 20 anos.
O fato de apenas uma empresa – que já tem concessão no estado – ter demonstrado interesse reforçou a certeza de que o problema com o leilão não era apenas o edital.
O governador do Piauí passou a ser visto com desconfiança desde que seu governo encerrou de forma unilateral, no fim de março, um contrato de PPP gratuita fechada em 2018 entre o Estado e a Globaltask, empresa com sede em Cuiabá, no Mato Grosso.
O que mais chamou a atenção não foi a disputa entre as partes – revelada pelo NeoFeed -, mas a condução desastrada do caso pela gestão de Fonteles.
Em um espaço de três meses, o governo do Piauí decretou a intervenção – a primeira do poder público no setor de telecomunicações desde a privatização nos anos 1990 – na Globaltask, ignorou decisão favorável à empresa em um tribunal de arbitragem e colocou fim no contrato sem concluir o processo administrativo para investigar a companhia.
Criada para construir uma rede de fibra óptica para os 224 municípios do estado, a PPP Piauí Conectado foi assinada na gestão do então governador Wellington Dias (PT), atual ministro do Desenvolvimento Social.
O contrato inicial de R$ 214 milhões ganhou um aditivo e passou a ser de R$ 396 milhões, o que ampliou o número de cidades (eram, inicialmente, 101) e o prazo para 30 anos. Entre 2018 e o fim do ano passado, a Globaltask já tinha aportado R$ 250 milhões no projeto.
Os problemas tiveram início na pandemia, quando Fonteles – que era secretário da Fazenda do governador Dias – tentou negociar com a Globaltask a troca do índice de correção do contrato, que estava atrelado ao IGP-M. O Estado propunha o IPCA em razão da situação de emergência financeira provocada pela pandemia, mas não houve acordo.
Após ser eleito, Fonteles decidiu rever o contrato da PPP com a Globaltask, impondo uma redução de 65% do valor do pagamento mensal à concessionária, dando início a uma briga judicial.
Mesmo com a Globaltask acumulando vitórias no tribunal de arbitragem, na Justiça Estadual, no Tribunal Regional Federal e no Superior Tribunal de Justiça (STJ), o governo estadual decretou a caducidade do contrato com a empresa em março, alegando um superfaturamento de R$ 104,5 milhões na PPP Piauí Conectado.
Sem recursos, a Globaltask entrou com pedido de recuperação judicial.
Impacto no leilão
Especialistas em concorrência pública ouvidos pelo NeoFeed admitem que a rescisão unilateral do contrato do governo estadual com a PPP Piauí Conectado pode ter afugentado investidores do leilão de saneamento.
Daniela Poli Vlavianos, do escritório Poli Advogados & Associados, afirma que a segurança jurídica é elemento essencial para o investimento em infraestrutura, que exige uma previsibilidade de longo prazo.
“A Lei de Concessões prevê que os contratos devem estabelecer claramente as condições de sua extinção, sempre mediante prévia indenização pelos investimentos realizados, o que parece não ter sido considerado no caso da Piauí Conectado”, diz Vlavianos.
Renato Fernandes Castro, advogado de Energia e Infraestrutura do escritório Almeida Prado & Hoffmann, diz que não há dúvidas que investidores acompanharam com preocupação a disputa entre o governo do Piauí e a Globaltask.
“Por outro lado, é importante ressaltar que o marco legal do saneamento básico e a modelagem da concessão dos serviços oferecem maiores garantias aos investidores em relação às PPPs, minimizando os riscos ao investidor por meio do oferecimento de maiores garantias contratuais”, afirma Castro.
Questões de segurança jurídica à parte, a concessão impõe vários desafios a Aegea. O Piauí tem o pior índice de cobertura de saneamento do Brasil. A coleta e o tratamento de esgoto contemplam atualmente apenas 18% dos habitantes no estado e, no interior, a cobertura é inferior a 10%.
São 5.253 km de rede de água e 601 km de rede de esgoto a serem construídos pela Aegea. Além disso, o estado tem baixa densidade populacional e boa parte da população deverá pagar tarifa social, impactando na arrecadação da concessionária.
Para Percy Soares Neto, sócio da Ikigai Consultoria e ex-diretor-executivo da Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon), o fato de o certame ter tido apenas um concorrente é ruim para o mercado.
“Mostra que a modelagem oferecida está muito próxima do limite do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, ou seja, poderia ter sido melhor elaborada, o que pode explicar a baixa participação de empresas”, diz Soares Neto.
Soares Neto não acredita que o caso da PPP Piauí Conectado tenha sido determinante para afugentar alguma empresa do leilão. “Essa insegurança jurídica pode ter influenciado na precificação que um concorrente faz para participar do leilão, ou seja, pode ter concluído que o valor não compensaria.”
Segundo ele, a Aegea certamente viu vantagem na sinergia da empresa com a outra concessão, na capital. Como tem uma estrutura montada, o custo de operação será menor. Por isso, ele vê duas prioridades a partir de agora, da concessionária e do governo estadual.
“Para a Aegea, o desafio será aumentar a receita com a tarifa, o que vai exigir uma estratégia de consolidação desse cadastro de consumidores aptos à tarifa social”, diz. “Para o governo, será estruturar a regulação dessa concessão para fazê-la funcionar.”
O valor da outorga, de R$ 1 bilhão, será dividido– 50% para o estado, 50% para os municípios. O governo estadual pretende usar o dinheiro para o programa de demissão voluntária da estatal de saneamento Águas e Esgotos do Piauí (Agespisa), que tem 900 funcionários efetivos e pode ser extinta.