Os voluntários que são infectados por doenças – 31/08/2024 – Equilíbrio


Era um voluntariado incomum. Mas ali estavam eles: um grupo de jovens adultos, aguardando para serem atacados por mosquitos portadores de um parasita que mata mais de 600 mil pessoas todos os anos.

O grupo havia concordado em fazer parte de um estudo médico do Instituto Jenner da Universidade de Oxford, no Reino Unido. Era o teste de uma nova vacina contra a malária.

Conhecida como “R21”, a vacina foi recebida com grande entusiasmo pelos cientistas, desde os primeiros anúncios.

O teste ocorreu em 2017, mas o instituto vinha realizando experimentos similares com mosquitos desde 2001.

Cada voluntário foi levado para um laboratório. Ali, sobre uma mesa, havia um pequeno recipiente, do tamanho de uma xícara de café, coberto por uma gaze.

Dentro, havia cinco mosquitos barulhentos, importados da América do Norte e infectados com o parasita da malária. O voluntário colocaria seu braço contra o topo do recipiente, para que os mosquitos pudessem trabalhar, picando a pele do voluntário através da cobertura.

À medida que os insetos sugavam o sangue da vítima voluntária, a saliva dos mosquitos, usada para evitar que sua refeição se coagule, poderia levar o parasita da malária para dentro da ferida. A esperança era que a vacina oferecesse aos voluntários proteção suficiente para que eles não desenvolvessem a doença.

Este é um exemplo clássico do que é conhecido como estudo de infecção humana controlada. Neste tipo de experimento, os voluntários são deliberadamente expostos a uma doença.

Pode parecer perigoso, talvez até imprudente, expor conscientemente uma pessoa a uma infecção que poderá deixá-la seriamente doente. Mas esta técnica se tornou popular nas últimas décadas, no setor de pesquisas médicas, e tem gerado resultados, com algumas conquistas médicas importantes.

Os cientistas comprovaram que a vacina R21 apresenta eficácia de até 80% na prevenção da malária. Ela se tornou a segunda vacina contra a doença a ser recomendada pela OMS (Organização Mundial da Saúde).

Recentemente, as primeiras doses da vacina foram administradas a bebês na Costa do Marfim e no Sudão do Sul —dois países que perdem milhares de pessoas todos os anos em decorrência da doença.

E, segundo os cientistas, tudo isso foi possível, em parte, porque os voluntários se dispuseram a expor seus braços àquelas xícaras repletas de mosquitos.

“Ao longo dos últimos 20 anos, houve um notável renascimento dos estudos de infecção humana”, afirma o professor de vacinologia Adrian Hill, diretor do Instituto Jenner. “Modelos de infecção têm sido usados para tudo, desde gripe até Covid. É realmente muito importante.”

Agora, os cientistas tentam infectar voluntários deliberadamente com cada vez mais doenças, na esperança de desenvolver vacinas e tratamentos cada vez mais eficazes.

Patógenos como zika, febre tifoide e cólera já foram usados em estudos de infecção humana controlada. E outros vírus estão entre os futuros candidatos, como o da hepatite C.

Não existe um registro central de estudos de infecção humana controlada. Mas Hill estima que eles tenham contribuído com pelo menos 12 vacinas nas últimas duas décadas.

Uma análise sistemática encontrou 308 estudos de infecção humana entre 1980 e 2021, que expuseram os participantes a patógenos vivos. Seus proponentes acreditam que os benefícios destes estudos superam amplamente os riscos, se forem corretamente conduzidos.

Mas alguns testes recentes questionaram as fronteiras da ética médica, fazendo com que alguns cientistas importantes passassem a se sentir desconfortáveis com a velocidade de condução desses experimentos, que eram um tabu até pouco tempo atrás.


Antecedentes

Para compreender as origens do mal-estar que persiste entre algumas pessoas sobre os estudos de infecção humana, é preciso analisar alguns dos momentos mais obscuros da história da medicina.

Os exemplos mais famosos são os experimentos realizados por cientistas da Alemanha nazista, que levaram prisioneiros dos campos de concentração a serem infectados à força com tuberculose e outros patógenos.

Menos conhecidas são as ações de médicos norte-americanos na Guatemala, em meados dos anos 1940. Eles infectaram intencionalmente 1.308 pessoas com sífilis e outras doenças sexualmente transmissíveis.

No início dos anos 1970, descobriu-se que médicos da Escola Estadual Willowbrook, na cidade de Nova York (Estados Unidos), expuseram mais de 50 crianças com deficiência intelectual a hepatite, nos anos 1950 e 1960. O propósito era criar uma vacina.

Entre os pesquisadores médicos, “Willowbrook” passou a ser sinônimo de falta de ética nas pesquisas. E os experimentos na escola também contribuíram para a descoberta de que existe mais de um patógeno responsável pela hepatite.

Todos estes exemplos contribuíram para criar uma imagem negativa da ideia de infectar intencionalmente as pessoas com patógenos, segundo o diretor do Instituto de Ética Kennedy da Universidade de Georgetown, nos Estados Unidos, Daniel Sulmasy. Ele fez parte da comissão presidencial americana que investigou os estudos sobre a sífilis na Guatemala.

No final dos anos 1960 e na década de 1970, cientistas em países desenvolvidos criaram uma série de normas para estudos médicos, colocando o bem-estar dos voluntários no centro das atenções. Com isso, ficou muito mais difícil realizar estudos de infecção humana controlada.

Mas, pouco a pouco, nossa visão da ética médica passou a ser mais flexível. E, em face da crescente ameaça das pandemias, os cientistas estão novamente se voltando para os estudos de infecção humana.

Uma das principais motivações é a velocidade.

Em um estudo de vacinas tradicional, os voluntários recebem uma vacina ou placebo e são orientados a levar sua vida normalmente. A esperança é que alguns dos voluntários sejam expostos ao vírus ao longo do seu dia a dia, oferecendo a chance de testar a eficácia das vacinas.

Mas o processo pode ser implacavelmente lento. O desenvolvimento de uma vacina típica contra uma doença infecciosa pode levar mais de dez anos, com gastos de dezenas de milhões de dólares. Enquanto isso, milhares —talvez milhões— de pessoas continuam a sofrer com a doença.

Os estudos de infecção humana controlada reduzem o tempo de busca. Eles eliminam o período de espera e observação, expondo o voluntário vacinado diretamente ao vírus.

“O tempo é importante e, às vezes, realmente precisamos ser muito mais rápidos”, afirma a professora de Medicina Andrea Cox, da Universidade Johns Hopkins em Baltimore, no Estado americano de Maryland.

Para ela, os estudos de infecção humana controlada são positivos: eles economizam tempo, dinheiro e, em última análise, vidas humanas.

Ela destaca que estes estudos são particularmente úteis no caso de patógenos raros, como Salmonella e Shigella. Os testes tradicionais para estes patógenos podem se arrastar por anos, enquanto os cientistas aguardam que os voluntários entrem em contato com a doença por acaso.

“Não é algo que aconteça com frequência e, por isso, esperar a ocorrência leva muito tempo”, explica a professora.

Quando realizados corretamente, os estudos de infecção humana controlada também podem agir como sistemas de alerta precoce, segundo os cientistas. Eles oferecem agilidade para os pesquisadores, testando a vacina em diferentes tipos de pessoas e destacando eventuais dificuldades na química envolvida.

De fato, Cox explica que as vacinas ocasionalmente apresentam problemas iniciais quando são lançadas. E é muito melhor descobrir essas questões no conforto do laboratório, com tratamentos facilmente disponíveis.

Ela menciona a vacina Dengvaxia, introduzida pelo governo das Filipinas em 2016 para proteger a população contra o vírus da dengue, responsável pela morte de milhares de pessoas todos os anos.

A vacina foi administrada a 800 mil crianças filipinas. Mas os pesquisadores identificaram um problema: a vacina funcionava bem para crianças que já haviam contraído dengue, mas era potencialmente perigosa para aquelas que ainda não haviam sido infectadas.

Por isso, a OMS alterou suas orientações em 2017, recomendando que a Dengvaxia não fosse administrada a indivíduos que não houvessem sido infectados anteriormente pelo vírus da dengue.

Este é exatamente o tipo de detalhe alarmante que um estudo de infecção humana controlada poderia ter detectado logo de início, segundo Cox.

Para ela, se a Dengvaxia tivesse sido testada em um estudo de infecção humana, os pesquisadores poderiam ter observado como a vacina e o vírus interagem dentro do corpo de diversos pacientes, incluindo aqueles que já haviam sido infectados pela dengue e os que não tiveram contato com o vírus.

“Aprender que uma vacina causa problemas em um ambiente com intensa observação e disponibilidade de assistência médica é melhor do que aprender em uma região do mundo onde existem recursos limitados”, diz Cox.

Riscos e prevenção

Durante os debates sobre os estudos de infecção humana controlada, os cientistas vêm discutindo há muito tempo a necessidade de tratamento confiável no caso de efeitos adversos.

O Instituto Jenner começou a expor intencionalmente as pessoas à malária em 2001. Naquela época, já existiam tratamentos eficazes contra a doença.

Os pesquisadores do instituto também têm o cuidado de usar uma linhagem de malária com alta sensibilidade ao tratamento medicinal. Isso se deve ao aumento da resistência do parasita aos medicamentos em muitas partes do mundo.

Mas alguns cientistas se preocupam com a permeabilização dos limites da ética, em relação ao uso em doenças sem tratamentos disponíveis.

Em 2022, pesquisadores norte-americanos administraram duas linhagens do vírus zika a 20 mulheres saudáveis (nenhuma delas grávida ou lactante). Elas fizeram parte de um estudo que também observou um número similar de homens infectados com o vírus.

O zika causa sintomas leves na maior parte dos adultos, mas pode gerar anormalidades no nascimento em bebês de pais infectados durante a gravidez. Em casos raros, o zika também é associado a problemas neurológicos em adultos. E não há tratamento contra o vírus.

As mulheres passaram por vários testes de gravidez antes do estudo e os pesquisadores pediram que elas usassem métodos de controle de natalidade pelos dois meses seguintes.

Os resultados do estudo ainda não foram publicados, mas todas as mulheres que receberam o vírus se infectaram. A maioria delas desenvolveu sintomas como dores nas juntas e erupções na pele durante o período de quarentena, segundo os detalhes relatados em uma conferência médica em 2023.

A pesquisa poderá fornecer um modelo para um estudo maior de infecção humana pelo vírus zika, segundo uma das autoras, a especialista em doenças infecciosas Anna Durbin, da Escola Bloomberg de Saúde Pública da Universidade Johns Hopkins.

Os pesquisadores estão agora recrutando voluntários para um estudo que testará a eficácia de uma vacina contra a dengue para proteger as pessoas deliberadamente infectadas com o vírus zika.

Talvez a maior controvérsia sobre os estudos de infecção humana controlada sejam as discussões sobre estudos com HIV, considerando as consequências da doença para toda a vida. Mas esta ainda é uma hipótese distante.

Mais realista é a perspectiva de um estudo de infecção humana controlada para hepatite C, um vírus que normalmente pode ser tratado, embora nem sempre. As infecções crônicas com o vírus podem causar cirrose, insuficiência hepática e levar à morte, se não receberem tratamento.

Pesquisadores da Universidade de Oxford, por exemplo, obtiveram financiamento para testar uma possível vacina contra a hepatite C, com um estudo de infecção humana controlada. Cox também propõe um estudo deste tipo com o vírus após sua frustrada tentativa de lançar um teste convencional de vacina contra a hepatite C, em 2012.

Ela conta que o teste durou seis anos e acabou fracassando —um processo emocional decepcionante, que viu milhões de pessoas morrerem da doença em todo o mundo no mesmo período.

Cox destaca que o estudo de infecção humana controlada seria muito mais rápido. Ela propõe o recrutamento de voluntários adultos totalmente informados, que dariam seu livre consentimento para participar, mas também receberiam pelo seu tempo.

Depois da vacinação, eles seriam deliberadamente expostos ao vírus e monitorados ao longo de diversas semanas ou meses. E os participantes que não se livrassem do vírus receberiam antivirais.

Mas, mesmo com medidas rigorosas de segurança, acidentes acontecem.

Hill conta que, em 2012, um voluntário do Instituto Jenner deixou de comparecer ao seu check-in médico obrigatório, sete dias depois de ser infectado com malária. Ele passou uma semana sem ser encontrado.

O voluntário estava bem, mas o incidente foi relatado para o comitê de ética. E as consequências poderiam ter sido muito mais sérias.

Altruísmo e voluntariado

A velocidade de realização dos estudos de infecção humana controlada é exatamente o que incomoda alguns cientistas. É o caso da professora emérita de infecções e imunologia Eleanor Riley, da Universidade de Edimburgo, no Reino Unido.

“Para os casos que têm potencial de causar doenças muito graves, sem que tenhamos um remédio para impedir o desenvolvimento daquele organismo, acho que… o equilíbrio se torna muito, muito mais difícil”, afirma ela.

“Quando existe um risco de morte de uma em cada 1 mil pessoas [por exemplo], você precisa me convencer de que irá conseguir algo que não pode aprender de nenhuma outra forma.”

Outros estudiosos da ética têm menos preocupações.

O professor de bioética Arthur Caplan, da Escola de Medicina Grossman da Universidade de Nova York, nos Estados Unidos, acredita que a noção de que os estudos de infecção humana somente devem ser realizados com doenças tratáveis é uma “moralidade confusa”. Para ele, “o altruísmo e a tentativa de ajudar os outros são razões totalmente legítimas para querer participar das pesquisas”.

Caplan menciona experimentos conduzidos para auxiliar a exploração espacial. Nesses estudos, pede-se aos voluntários que se deitem sobre uma cama que se inclina para trás e leva o fluxo sanguíneo em direção ao cérebro, para imitar os efeitos da microgravidade.

Muitas vezes, os voluntários obtêm poucos benefícios ao fazerem parte desses estudos, segundo ele. Eles simplesmente participam pelo bem público.

“Ou seja, existem precedentes de uso de pessoas em estudos que se voluntariam para enfrentar riscos sem obter benefícios”, conclui Caplan.

Os estudos na pandemia

Todas estas questões vieram à tona em 2021, quando o Imperial College de Londres anunciou o primeiro estudo de infecção humana controlada do mundo para Covid.

O experimento foi recebido com entusiasmo, principalmente pelo grupo ativista norte-americano 1DaySooner. Criado em março de 2020 em resposta à pandemia de Covid, o grupo tem como propósito promover mais estudos de infecção humana controlada e apoiar o recrutamento de voluntários.

O estudo forneceu conhecimentos valiosos sobre por que algumas pessoas conseguem evitar ficar doentes, mesmo depois de infectadas. Ele revelou que elas dispõem de uma reação imunológica localizada no revestimento do nariz, o que evita que o vírus se instale nos seus corpos.

Mas o estudo também gerou controvérsias. Afinal, a Covid não tem cura e seus efeitos de longo prazo são imprevisíveis.

Trinta e seis jovens adultos foram expostos ao vírus por meio de um líquido gotejado no nariz e mantidos em quarentena por 14 dias, em um hospital de Londres.

“Observamos que [os voluntários] sofreram grande reprodução do vírus no nariz e na garganta e permaneceram com a infecção por cerca de dez dias”, afirma uma das autoras do estudo, a professora clínica Anika Singanayagam, do Imperial College de Londres.

O estudo também ajudou a comprovar a precisão dos testes de antígeno (também conhecidos como testes rápidos) —os testes de Covid domésticos, de fácil utilização, empregados rotineiramente na época em muitos países.

Mas Daniel Sulmasy acredita que o estudo de infecção humana controlada do Imperial College não passou pelo crivo da ética.

Para ele, “não se aprendeu muita coisa que não poderia ser estudada de formas alternativas. A Covid era algo novo. Eles realmente não sabiam muito sobre as consequências de longo prazo.”

Sulmasy destaca que diversas vacinas contra a Covid já haviam sido aprovadas na época do início do estudo, o que reduzia a necessidade de assumir aquele risco.

Em declaração por escrito, o Imperial College de Londres afirmou que Remdesivir —o tratamento antiviral que pode reduzir o risco de doença grave em pacientes com Covid— ficou disponível ao longo de todo o estudo para qualquer voluntário que apresentasse sintomas maiores do que o esperado.

“Quando o estudo foi eticamente aprovado, já estávamos com um ano de pandemia”, declarou um porta-voz. “Naquela época, havia muitas informações sobre a doença em adultos jovens saudáveis que demonstravam risco muito baixo de doença grave naquele grupo.”

O Imperial College acrescentou que o estudo “forneceu muitos dados granulares sobre a infecção [por Covid], o que não teria sido possível com outros tipos de estudo”.

Desde então, surgiram outros estudos de infecção humana controlada com Covid. Pesquisadores do Instituto Jenner da Universidade de Oxford, por exemplo, estão agora inscrevendo participantes para um estudo que irá infectar deliberadamente voluntários vacinados contra Covid com a subvariante Ômicron BA.5.

O objetivo é entender melhor como as vacinas interagem com as subvariantes do vírus. Os participantes receberão 4.935 libras (cerca de R$ 36 mil) pelo seu tempo e para cobrir despesas de viagem.

Sean Cousins tem 33 anos e trabalha como entregador em Southampton, no Reino Unido. Ele recebeu mais de 11 mil libras (cerca de R$ 80,3 mil) para participar de três estudos de infecção humana controlada entre 2014 e 2020.

Em dois dos estudos, ele foi infectado com influenza. No terceiro, com vírus sincicial respiratório. Mas ele afirma que teria se inscrito mesmo sem receber para isso.

“Era apenas algo novo para testar”, explica ele. “[Eu queria] fornecer meu tempo […] e apenas ajudar a humanidade, se pudesse.”

Em um ponto, os cientistas concordam: iremos provavelmente observar mais estudos de infecção humana controlada no futuro.

A lista de patógenos utilizados também irá crescer, incluindo alguns perigosos e sem tratamento. Isso deixa alguns cientistas, como Sulmasy, com uma sensação de ansiedade difícil de controlar.

“Acho que iremos estender as fronteiras e só iremos parar quando alguém sair prejudicado”, afirma ele.

Já outros preveem imensas oportunidades para a medicina. Eles defendem que, com os controles certos, os estudos de infecção humana controlada podem melhorar e acelerar o desenvolvimento de vacinas contra doenças que atormentam a humanidade há séculos.

Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Innovation.



Fonte: Folha de São Paulo

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