[RESUMO] A FDA, agência americana de regulação de medicamentos, está na reta final da autorização de protocolos de psicoterapia com apoio em psicodélicos. Grupos militantes oriundos da contracultura e de tradições indígenas questionam a legitimidade da incorporação de compostos como MDMA e psilocibina por corporações biomédicas e do uso de plantas de poder como ayahuasca e peiote por igrejas psicodélicas urbanas.
Em 4 de junho, a agência de fármacos dos EUA realizará audiência pública sui generis sobre uma droga proscrita candidata a se tornar remédio. Será um dos passos derradeiros para a FDA decidir se MDMA (ecstasy) pode ser usado em psicoterapia para transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), o que deve ocorrer em agosto.
A substância alteradora da consciência não se encaixa propriamente no conceito de psicodélico, por não provocar visões. Há quem prefira categorizar MDMA como empatógeno ou entactógeno, para enfatizar sua capacidade de induzir compaixão, abertura e aceitação em pessoas psiquicamente incapacitadas por traumas.
O público mais ansioso pelo tratamento reúne os veteranos de muitas guerras norte-americanas. Há centenas de milhares com problemas psiquiátricos, e duas dezenas deles se matam a cada dia nos EUA —país que não carece de vítimas de violência urbana, policial ou sexual. Desde os atentados de 11 de setembro de 2001, morreram mais ex-combatentes por suicídio do que em campos de batalha.
Salvo contratempos, a decisão da FDA em agosto deve ser favorável à psicoterapia assistida por psicodélicos. Virá coroar esforços de 38 anos da organização não governamental Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos, que se encontra sob fogo amigo.
A Maps (na sigla em inglês) foi fundada pelo ex-hippie Rick Doblin em 1986, meses depois da proibição da MDMA nos EUA. Em quase quatro décadas, ela se mostrou capaz de levantar US$ 130 milhões de doadores filantrópicos para bancar bem-sucedidos testes clínicos de fase 2 e 3 que geraram os dados submetidos à FDA.
Criatura e criador se encontram agora sob ataque. O divisor de águas na vanguarda do renascimento psicodélico que está afastando militantes de capitalistas foi erguido pela necessidade aguda de recursos milionários para a pesquisa não morrer na praia. Em meados de 2023, a empresa Maps PBC, criada pela ONG, tinha verba para operar somente por dois meses.
Com ajuda de uma consultoria, a saída foi buscar capital privado, agora de investidores e não mais de filantropos. Levantaram-se US$ 100 milhões de empresários tornados sócios da Maps PBC —rebatizada Lykos Therapeutics para marcar o desmame da ONG-mãe e sua emancipação corporativa, por assim dizer.
O movimento não pegou bem entre pessoas que sustentaram a Maps por décadas, no tempo em que defender psicodélicos era arriscado. Tempo e dinheiro doados por voluntários produziram estudos e resultados sobre MDMA cujo licenciamento eventual pela FDA e futura comercialização passariam a beneficiar a Lykos, não tanto a Maps, que de resto perdeu o controle dos rumos da empresa.
O crescimento vertiginoso da ONG a partir de 2017, quando começou a chover dinheiro no campo psicodélico, não se fez sem atritos. Algumas pessoas que trabalharam na Maps saíram com queixas sobre um suposto estilo caótico e messiânico emprestado por Doblin à organização. Outras iam sendo demitidas e substituídas por administradores menos visionários, para dizer o menos.
Dois escândalos abalaram o prestígio da ONG. Uma participante canadense de estudo clínico, Meaghan Buisson, denunciou ter sofrido abuso sexual pelo casal de terapeutas que lhe ministrou MDMA em 2015. A morte num festival da jovem Baylee Ybarra Gatlin em 2017, sob cuidados do Projeto Zendo, braço de redução de danos da Maps, resultou num processo que condenou a ONG a pagar US$ 1 milhão à família.
Recorrendo a essas várias fontes, a jornalista Anna Silman publicou no site Business Insider um perfil comprometedor da Maps e de Doblin. O título: “Terapia com MDMA pode tornar-se legal no verão. Por que tantos militantes estão soando o alarme?”.
Silman conduziu sua investigação com apoio financeiro do Centro para a Ciência de Psicodélicos da Universidade da Califórnia em Berkeley, que tem o escritor Michael Pollan entre as estrelas do programa de jornalismo. Pollan é o autor do best-seller “Como Mudar Sua Mente”, de 2018, livro que ajudou a reabilitar estudos psicodélicos e popularizou o trabalho de Doblin à frente da Maps.
Mais até que problemas internos da associação, o que parece mover alguns dos oponentes da Lykos é a discordância com o modelo corporativo de medicalização que estaria sendo abraçado acriticamente pela empresa. Uma ex-voluntária da Maps, a filósofa Neşe Devenot, hoje professora da Universidade Johns Hopkins, tornou-se crítica empenhada em desacreditar os ensaios clínicos com MDMA.
Devenot assinou com Buisson e Sarah McNamee um artigo no periódico Jama Psychiatry, em março de 2023, apontando riscos de danos a pacientes no componente de psicoterapia do tratamento. Efeitos adversos sérios, como ideações suicidas, estariam sendo negligenciados nos estudos com psicodélicos, além do risco de abuso sexual sob o efeito de sugestionabilidade induzido por tais compostos.
O golpe mais forte contra o teste de fase 3 submetido pela Lykos à FDA veio do Instituto para Revisão Clínica e Econômica (Icer, em inglês), um órgão independente sediado em Boston que produz avaliações de custo-benefício de procedimentos médicos e remédios. Em março, o Icer publicou um relatório de 108 páginas desfavorável aos estudos sobre MDMA para transtorno de estresse pós-traumático.
O relatório do Icer afirma que a evidência clínica de benefícios seria “insuficiente”, pior avaliação possível. Após revisões, o documento será auditado por comitês e votado, começando por reunião pública no final de maio do Conselho Consultivo Público de Eficácia Comparativa da Nova Inglaterra (Cepac, em inglês), outra organização independente.
O documento registra que 13 milhões de norte-americanos (5% da população adulta) sofrem com TEPT e que o transtorno impõe um custo social avaliado em US$ 232,2 bilhões anuais, segundo cálculo de 2018. Afirma que a terapia com MDMA seria um acréscimo importante ao tratamento, mas que havia “preocupações substanciais sobre a validade dos resultados” da Lykos.
Um dos problemas centrais estaria no duplo cegamento necessário para satisfazer o padrão ouro da FDA. Como os efeitos do psicodélico são óbvios, pacientes e experimentadores adivinham corretamente quem tomou a substância e quem tomou placebo. Além disso, o relatório cita relatos de que, dos dois lados, havia forte convicção prévia sobre benefícios da droga, outro viés problemático.
Mais de 70 dos 109 terapeutas e pesquisadores que participaram dos testes de fase 3 reagiram com críticas ao relatório do Icer. Alegaram que nenhum deles havia sido consultado pelo instituto, cuja avaliação estaria baseada só em boatos espalhados por um podcast e artigos de notórios adversários da medicalização de psicodélicos.
O Icer, por sua vez, reagiu acusando a Lykos de não ter respondido a seus pedidos de reunião para debater problemas do estudo. A controvérsia prossegue e pode ser acompanhada na newsletter Psychedelic Alpha, como neste apanhado de Josh Hardman.
Devenot foi além e organizou uma petição solicitando à FDA que convocasse uma reunião extraordinária sobre os resultados da Lykos. Na realidade, já havia um encontro programado para 4 de junho, a audiência pública mencionada aqui no primeiro parágrafo. Por isso, a FDA pediu à professora que retirasse a petição.
As indicações são de que a agência, em que pese a controvérsia, se inclina a aprovar o protocolo de psicoterapia da Lykos para TEPT, que envolve três sessões com MDMA num total de nove. Um fator poderoso nessa direção é a expectativa criada entre veteranos de guerra por essa alternativa de tratamento.
Em 10 de maio, falando na conferência psicodélica Horizons, em Nova York, Shereef Elnahal, executivo do Departamento de Assuntos de Veteranos, disse saber que, “assim que a FDA aprovar MDMA, vamos ver a demanda por isso disparar e romper o teto”. A agência federal começou a financiar estudos psicodélicos em janeiro e já tem 13 projeto em andamento.
“As terapias baseadas em evidência que nós temos, embora ajudem, empalidecem em comparação, se pudermos replicar a escala vista nos resultados preliminares que vimos em psicodélicos, especialmente MDMA para TEPT, e cada vez mais com psilocibina para depressão resistente a tratamento.”
Muitos veteranos, quiçá por desespero, não se dispõem a esperar o lento processo de aprovação pela via medicalizante, que após a licença da FDA ainda terá de ser implementada em clínicas e autorizada para reembolso por seguros de saúde. Partem em busca de experiências psicodélicas em retiros ou igrejas, por conta própria ou por meio de grupos de autoajuda de ex-militares.
Um deles é o projeto Heroic Hearts, que já propiciou sessões com psicodélicos a mais de mil veteranos e anuncia melhora em 80% dos casos, contra meros 10% nos tratamentos convencionais. O programa dura 12 semanas, inclui seis encontros de preparação, retiros com uma a cinco cerimônias com ayahuasca ou psilocibina e mais seis reuniões de integração, para extrair lições da experiência.
Raramente o contato com psicodélicos se dá nos EUA, onde só estados como Oregon e Colorado regulamentaram serviços de psilocibina, por exemplo. Mais comum é o paciente viajar para tomar ayahuasca em países como Jamaica, México, Costa Rica ou Peru, onde a qualidade e a segurança dos retiros variam muito.
Estrangeiros com transtornos psiquiátricos, altas expectativas e sob efeito de substâncias alteradoras da consciência são presas fáceis para curandeiros inescrupulosos. Há relatos de abuso sexual de veteranas e não veteranas na meca ayahuasqueira de Iquitos, no Peru, como narra o recém-lançado livro “Trippy”, de Ernesto Londoño, jornalista do New York Times que descobriu o chá no Brasil.
Uma alternativa mais segura são religiões que operam de forma legal nos EUA, como União do Vegetal ou Santo Daime. Mas esses pequenos grupos não podem dar conta da demanda crescente, muito menos em caráter emergencial, como no caso de veteranos com ideações suicidas.
Além das poucas religiões reconhecidas, existe um movimento de criação de igrejas psicodélicas. Elas sempre existiram de clandestinamente, como retrata o historiador J. Christian Greer no artigo “The psychedelic chruch movement” (2022), mas outras vão surgindo. Algumas buscam legalização com base no direito constitucional à liberdade de culto.
Sucesso recente obteve a Igreja da Águia e do Condor (CEC, em inglês), iniciativa do médico norte-americano Joseph Tafur. De família colombiana, após ter contato com ayahuasca e formar-se em medicina na Universidade da Califórnia em San Diego ele passou a viajar com frequência para Iquitos e, depois, a levar estrangeiros até lá para vivências com a bebida guiadas por xamãs da etnia shipibo.
A atividade redundou na criação do Centro Espiritual Nihue Rao em sociedade com o mestre ayahuasqueiro Ricardo Amaringo, que orientou a formação de Tafur nas práticas e dietas vegetalistas. Ao longo dos anos, ele conta em seu livro “The Fellowship of the River”, viu pessoas se curarem de TEPT, ansiedade e depressão nesses retiros: “Com frequência a abordagem médica ocidental falha em incluir as dimensões emocionais e espirituais dessas doenças crônicas e enfermidades relacionadas, vendo-as apenas como condições físicas”.
Após vários anos de idas e vindas entre Peru e EUA, Tafur decidiu com Rodney Garcia, em 2018, abrir sua própria igreja em Phoenix, Arizona, a CEC, e partir em busca de sua legalização. Hoje, o grupo conta com 40 integrantes na cidade e uma centena no país todo.
Quando o conheci na conferência Psychedelic Culture, do Instituto Chacruna, no final de abril em San Francisco, ele comemorava discretamente uma vitória significativa. Em acordo com quatro agências federais norte-americanas, a CEC viu reconhecido seu direito de importar ayahuasca e usá-la como sacramento.
Segundo o Psychedelic Alpha, foi a primeira vez que uma igreja sem inspiração cristã obteve proteção para usar o chá psicodélico como parte de suas práticas espirituais. Permanece em aberto, anota o boletim, se o desfecho implicará benevolência com pedidos de outras igrejas, uma vez que o precedente se abriu por acordo e não após julgamento de mérito.
A discrição ao comemorar a conclusão favorável decorria de haver outros flancos abertos da CEC. Desta vez, no próprio campo das plantas de poder, como se diz.
Grupos nativos dos EUA temem que o precedente da CEC dê curso a uma enxurrada de decisões favoráveis a igrejas com pouca tradição indígena que, talvez, venham a ameaçar estoques naturais do cacto peiote. No Peru, alguns grupos questionam as credenciais de Tafur para realizar rituais de matriz shipibo sem prévio consentimento, embora ele tenha sido iniciado nela.
Modelo bem diverso da CEC segue A Assembleia Divina (TDA, em inglês), criada em 2020 por Sara e Steve Urquhart em Salt Lake City, em Utah. Difícil imaginar dupla mais improvável na liderança de uma igreja que tem cogumelos “mágicos” como sacramento: o casal já foi mórmon, e Steve passou 16 anos como senador estadual representando o Partido Republicano.
Em entrevista na conferência Chacruna, ele contou que estava perdido, em luta com a religião e a política, voltado ao álcool e outras drogas, quando encontrou a ayahuasca. Depois vieram os cogumelos, e ele concluiu que esse meio para “se conectar com o divino” merecia proteção legal.
Assim nasceu a rizômica igreja TDA: uma congregação de pessoas que cultivam e consagram os fungos individualmente, não em grupo, dado que suas reuniões ocorrem sempre em sobriedade. Tornar-se membro é uma maneira de proteger-se legalmente, pois o usuário de cogumelos psicodélicos ao menos pode provar que pertence a uma igreja na qual eles figuram como sacramento.
Na loja online da TDA, a carteirinha de membro sai por US$ 75, mesmo preço do kit para cultivar cogumelos. Bonés bordados saem por US$ 29,95. Camisetas, US$ 21,95.
São cerca de 700 fiéis em Salt Lake City, em cujas montanhas o grupo organiza festivais todo solstício de verão, mais 15 mil membros nos EUA e noutros países. “A TDA claramente é uma religião”, sustenta o ex-senador. “Distribuir kits é a maneira mais segura [de dar acesso ao sacramento]. Fica a cargo dos indivíduos.”
Acesso legal e consumo seguro são as grandes questões em torno de psicodélicos, cuja má fama se dissipa no meio social, uma reabilitação impelida pela enxurrada de estudos científicos atestando efeitos terapêuticos. Muitos querem contato com eles, mas poucos dispõem de milhares de dólares para custear sessões de cetamina em São Francisco, serviços de psilocibina no Oregon ou retiros na selva do Peru.
Cerca de 20 estados norte-americanos têm leis ou projetos de lei sobre descriminalização ou tolerância com psicodélicos, mas só o Oregon e o Colorado chegaram lá. Esperava-se que a Califórnia fosse a próxima, mas pela segunda vez o Legislativo estadual brecou, em 13 de maio, iniciativa do senador democrata Scott Wiener —não no mérito, mas pelo impacto desconhecido sobre o orçamento.
A regulamentação pela FDA, assim, mesmo bombardeada por quem deplora a via medicalizada, permanece como grande esperança de milhões que padecem com TEPT, depressão e outros transtornos de humor. O rumo tomado por Rick Doblin e a Lykos pode não agradar aos herdeiros da contracultura, mas é fato que, sem sua militância de quatro décadas, nada disso estaria hoje em discussão.