Ao completar 60 anos, Ana Elvira Azevedo de Oliveira recebeu “o maior presente da vida”: participou como voluntária de um teste clínico de cetamina (ou ketamina) para depressão. “Eu renasci. Sou outra pessoa.”
Foram oito sessões semanais com o anestésico dissociativo, que ocasiona viagens similares ao efeito de substâncias como LSD, psilocibina e dimetiltriptamina (DMT). Como age sobre receptores diferentes em neurônios, a cetamina não figura entre esses psicodélicos clássicos (que incluem ainda mescalina e 5-MeO-DMT).
Em 2006, a assistente administrativa da Secretaria Estadual de Saúde potiguar havia chegado perto de se matar com a arma de um irmão. Foi demovida da ideia por um amigo para quem ligou, em desespero.
“Os problemas continuam existindo”, ressalva hoje, referindo-se a dívidas, climatério, luto pela morte dos pais e de uma companheira com quem viveu por 15 anos no Rio de Janeiro. “Mas não preciso mais me matar [para resolvê-los].”
O teste clínico de fase 2 está em curso no Hospital Universitário Onofre Lopes (Huol) em parceria com o Instituto de Cérebro (ICe), ambos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Nesta fase o ensaio engloba psicoterapia em várias sessões de preparação, integração e acompanhamento por vários meses.
O grupo liderado por Dráulio Barros de Araújo e Nicole Leite Galvão-Coelho publicou no final de junho resultados da primeira fase do teste com cetamina para depressão, ainda sem o apoio psicoterápico. O artigo saiu eletronicamente no Journal of Psychiatric Research e aparecerá impresso na edição de agosto.
Ao todo 18 pacientes com depressão resistente a tratamentos convencionais receberam as doses semanais por injeções subcutâneas na barriga. Destes, 11 tiveram remissão de ideações suicidas ao longo das oito semanas de tratamento experimental.
Durante a fase 1, relata Galvão-Coelho, percebeu-se que muitos pacientes, por serem inexperientes com psicodélicos, tinham medo do que poderia acontecer. Além disso, depois das viagens, não sabiam lidar com os lampejos obtidos e os traumas relembrados.
“A fase 2 foi estruturada para atender essa demanda observada na pesquisa”, explica a pesquisadora. “A ideia é trazer mais segurança para os pacientes e, quem sabe, potencializar o efeito clínico com a intervenção psicoterapêutica.”
Elvira, voluntária dessa segunda etapa, teve várias visões sob efeito da cetamina. Na primeira sessão, viu-se pulando de um avião na companhia da cadela vira-lata Greta Thunberg Lula da Silva.
Na consulta de integração com a psicóloga Melanie Gurgel, concluiu que a imagem significava confiança no neurocientista Dráulio de Araújo, que tem paraquedismo como hobby. “Sou louca por ele.”
Numa das viagens cruzou o mar no dorso de uma tartaruga, para ela um símbolo de longevidade, ou seja, da renúncia ao suicídio. Noutra, passou de lagarta para borboleta multicor, um símbolo de sua transformação.
De mãos dadas com Jesus Cristo, encontrou a companheira e os pais trabalhando num hospital, felizes. Na última, literalmente renasceu na pele de um bebê.
Elvira largou a bebida e o cigarro, dos quais abusava há décadas, e os antidepressivos. N entrevista, fazia dois meses que participara da última sessão. Admitiu que poderá enfrentar recaídas na depressão, mas está confiante em sua capacidade de sair delas. Kardecista, agora vai todos os dias a um centro espírita.
A cetamina não é o único psicodélico (em sentido amplo) na mira do grupo da UFRN. Usando ayahuasca, a equipe publicou em 2018 o primeiro teste clínico aleatorizado duplo-cego controlado por placebo contra depressão. Nos últimos anos, tem pesquisado também a DMT para tratar o mesmo transtorno, como maneira de diversificar ferramentas na caixa terapêutica.
“A DMT e a cetamina são intervenções que carregam várias semelhanças”, diz Araújo. “Embora ambas sejam seguras, a DMT é endógena [produzida em pequena quantidade no cérebro] e de fato apresenta vários fatores de segurança superiores à cetamina, que pode levar ao uso abusivo. Com a DMT isso é praticamente inexistente.”
Caso os efeitos antidepressivos rápidos até aqui obtidos se confirmem em estudos maiores e as duas drogas terminem aprovadas para uso clínico, elas poderiam figurar como tratamentos alternativos. Para alguns pacientes, a DMT funcionaria melhor; para outros, a cetamina.
“Por isso se torna crucial a investigação de biomarcadores”, agrega Galvão-Coelho, responsável por monitorar indicadores de estresse, inflamação e neuroplasticidade [novas conexões neuronais] no sangue de pacientes. “Nos ajudariam a identificar possíveis especificidades biológicas que possam predizer a resposta clínica.”
Para a engenheira e neurocientista Fernanda Palhano-Fontes, co-autora do estudo, quanto mais opções houver para tratar depressão, ou outros transtornos mentais, melhor. “A DMT e a cetamina não funcionam para todos os pacientes, então ampliar as possibilidades de tratamento é oferecer mais alternativas.”
Ela conta que um paciente da primeira fase com cetamina não melhorou, mas, um ano e meio depois, se inscreveu no estudo da DMT e teve ótima resposta. Inversamente, uma paciente do ensaio com DMT não melhorou e se inscreveu pra essa segunda fase da cetamina.
“A cetamina é um tratamento que já está sendo usado no SUS enquanto a DMT tem um caminho longo a ser percorrido. Acho importante continuar pesquisando as duas substâncias.”
Na verdade, três: Galvão-Coelho colaborou com Richardson Leão, Katarina Leão, Margareth Nogueira e outros pesquisadores da UFRN em outro artigo, de 5 de julho, desta vez com o psicodélico 5-MeO-DMT, no periódico Molecular Psychiatry. Usando camundongos, a equipe mostrou a modulação de genes com efeito ansiolítico e indutor de neuroplasticidade da substância.
———————–
Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira”.
Não deixe de ver também as reportagens da série “A Ressurreição da Jurema”:
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/reporter-conta-experiencia-de-inalar-dmt-psicodelico-em-teste-contra-depressao.shtml
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/da-caatinga-ao-laboratorio-cientistas-investigam-efeito-antidepressivo-de-psicodelico.shtml
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/cultos-com-alucinogeno-da-jurema-florescem-no-nordeste.shtml
Cabe lembrar que psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.