Como é a psicoterapia assistida por psicodélicos – 15/05/2024 – Virada Psicodélica


Durante estadia em São Francisco para participar da conferência Psychedelic Culture 2024, do Instituto Chacruna, tive a oportunidade de vivenciar uma sessão com cetamina no Polaris Insight Center. Foi a primeira experiência direta com o modelo de psicoterapia assistida por psicodélico (PAP) que deverá ser regulamentado em agosto nos EUA.

Será a primeira autorização da agência norte-americana de fármacos, FDA, para o emprego de uma substância alteradora da consciência em psicoterapia. No alvo está MDMA (ecstasy) para tratamento de transtorno de estresse pós-traumático.

Como MDMA, cetamina em verdade não é um psicodélico clássico como mescalina, LSD, psilocibina ou dimetiltriptamina (DMT). Porém, esse anestésico dissociativo tem uso psicoterápico fora de bula (“off-label”) legalizado, mesmo no Brasil, inclusive como spray nasal. Alguns psiquiatras a prescrevem para depressão grave, não raro com ideações suicidas.

O tratamento, em geral meramente medicamentoso, costuma acontecer em clínicas psiquiátricas como a Beneva, em São Paulo. A pessoa inala ou recebe uma injeção intravenosa da substância e fica em observação por uma hora ou duas –e pronto, vai para casa. Todo um outro modelo se segue na PAP, em que ênfase recai sobre o primero P, de psicoterapia.

No caso da Polaris, em atividade há sete anos, o alicerce psicoterapêutico começa a ser assentado semanas antes. De início há que preencher vários formulários online de consentimento. Um acordo, entre outros, indica que tipo de toque físico os terapeutas ficam autorizados a realizar, como só pegar na mão da pessoa, ou pôr a palma sobre seu peito para acalmá-la.

Depois vem uma sessão preparatória, por vídeo, que no caso ocorreu na companhia de quatro pessoas ainda em território brasileiro. Incluindo as sessões de dosagem e de integração em grupo, o tratamento custa cerca de US$ 1.600; feito individualmente, pode ultrapassar US$ 2.400.

Os terapeutas Harvey Schwartz e Veronika Gold descrevem em detalhes como se dará a sessão, tiram dúvidas e questionam os participantes sobre expectativas, intenções e receios com o tratamento. Ambos são psicólogos treinados em PAP pela Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps, em inglês), que iniciou os testes clínicos para licenciar MDMA na FDA.

Schwartz e Gold dão conselhos que se revelaram úteis. Sugerem ao participante não se afligir com a viagem, que pode ser tão perturbadora quanto uma sensação de morte ou desincorporação, e se entregar a ela. Recomendam, ainda, buscar acompanhar e integrar-se com a música instrumental que tocará todo o tempo.

Schwartz, experimentado psiconauta, aconselha relaxar e não resistir às experiências de fusão com melodias, pessoas ou objetos que se apresentarem. Usaríamos máscaras especiais espumadas que, mesmo ao tapar a visão do exterior, deixam espaço para abrir os olhos no escuro.

O terapeuta afirma que a cetamina transforma o dito “ver é acreditar” (“seeing is believing”) em “acreditar é tornar-se” (“believing is becoming”). Mesmo que se encontrem pessoas mortas ou entidades outras na viagem, propõe que sejam abordadas sem temor e com curiosidade, perguntando onde estão e como se sentem ali.

No Polaris, a cetamina pode ser aplicada com injeção intramuscular, que faz efeito em segundos, ou na forma de um comprimido para dissolver lentamente na boca (“lozenge”), que demora vários minutos. No caso de nosso grupo, seria por meio de picada no braço, em doses relativamente altas, 90 a 100 miligramas.

Poucos dias antes acontece por vídeo a liberação médica (“medical intake”), para a qual é preciso encontrar-se em território californiano. O psiquiatra Robert Voloshin confirma em cerca de dez minutos dados apresentados nos questionários online e pergunta sobre o estado de saúde no momento. No dia da cetamina mede-se a pressão arterial de cada um, e a precaução clínica fica por aí.

Cheguei às 10h20 ao consultório, uma casa comum no número 4257 da 18th Street. Minutos depois fomos os cinco, um por um, até a cozinha para medir a pressão. A minha deu 130:87, algo mais alta que o habitual, provavelmente por causa de certa apreensão, que não chegava a ser medo, só um pouco de ansiedade.

O grupo se dividiu em dois, o casal numa sala e três homens em outra. A sala em que fiquei tem duas janelas amplas, mesa, cadeira de leitura confortável com banco para os pés, mesinha com abajur, planta grande no canto, estante branca na parede à direita e alguns quadros (um deles com temas esotéricos, como triângulos, asas, círculos, olhos estilizados etc.).

Na parede em frente ao sofá em que me acomodei há uma tapeçaria de indígenas Shipibo da Amazônia peruana, com fundo marrom, folhas verdes e vários elementos abstratos em laranja, roxo e amarelo, mais duas flores e um círculo central de volutas. No chão havia dois colchonetes, mas escolhi o sofá por receio de enfrentar dificuldade em me levantar do chão sob efeito da cetamina.

Antes da aplicação repassamos dúvidas, orientações, passo a passo do que faríamos e as respectivas intenções. Falei de um objetivo genérico, enfrentar o medo da morte e a dificuldade com a perspectiva de perder o controle.

Schwartz fez uma pequena oração, quase secular, quase ecumênica, e perguntou se queríamos acrescentar algo. Cada um tirou uma carta de um dos baralhos disponíveis. A minha tinha um desenho indefinido, que poderia ser um pico agudo de montanha, com o dístico “Time for a quantum leap – Prepare for a makeover” (tempo para um salto quântico – prepare-se para uma transformação).

O texto correspondente no livrinho motivacional que acompanha as cartas falava em “sentir o arrepio do vento da mudança soprando entre os cabelos”. Propunha como mantra, ainda, a frase “eu dispenso tudo que não mais me serve, de modo que uma versão melhor de mim possa emergir”. Na hora, achei banal.

Todos os três decidimos tomar remédio contra náusea, um comprimido para dissolver sob a língua que nos foi trazido pela enfermeira. Mais uns minutos e ela voltou para as injeções, 90 mg para mim, o mais velho, e 100 mg para os outros.

Acomodei-me sobre o lençol lilás e me cobri com o cobertor mesclado de bege e marrom. Deixei na mesinha do lado caderneta e caneta, que terminaram sem uso. Fizemos três vocalizações: “oooomm”.

O efeito chega de forma gentil, um afastamento progressivo da realidade corporal que nada teve de desconfortável. A inquietação habitual que precede cada experiência psicodélica não compareceu: não tive medo em momento algum, mesmo quando ficou evidente que todo controle escapava de mim.

Permaneci imóvel por quase duas horas, não por incapacidade, mais por indiferença diante do fato de ter um corpo. Sabia que estava ali, respirando, mas não dava importância a isso. Cheguei a fazer respirações profundas, sibilando ao soltar o ar longamente, o que ajudava no mergulho para dentro do buraco da cetamina.

Compreeendi então essa expressão, “K-hole”, de modo visceral. À medida que adentrava o campo escuro, nem caindo nem decolando, navegava por um espaço que parecia criar-se e mover-se comigo naquela deriva.

Era como se a própria luz fosse preta, descrevi depois. Alguma coisa se via, com alguma cor, mas era como se o aparelho sensorial fosse outro, um outro tipo de olho. Será assim tão estranha a “visão” de morcegos?

A música não era exatamente ouvida, antes percebida, processada de maneira diferente. Por vezes senti-me como se fosse um organismo de tipo não-humano. Como que incorpóreo, mas hipervivo.

Fui perdendo a noção de tempo e o pensamento em formato verbal, ainda que pressentisse uma parte da mente, recolhida num canto desimportante, registrando debilmente o esvaimento. Buscando, talvez, enquadrar a experiência em alguns conceitos e frases –tudo em vão.

As poucas vezes em que me dediquei a modular a respiração o fiz para irmanar-me com a música, na qual seguidamente sentia fundir-me, como se não existisse e ela ao mesmo tempo emanasse de mim. A playlist é muito boa, mas não saberia dizer o que de fato tocou, só que forneceu um fio condutor eloquente.

Devo ter ressoado algumas notas com as cordas vocais; se isso não ocorreu (ninguém ouviu), fato é que senti como se vibrássemos em uníssono. É difícil acreditar que tenha ficado por uma hora nessa navegação sem rumo, levado pelo balanço das ondas sonoras e por correntes profundas.

Talvez pela perda da articulação verbal do pensamento, a jornada foi também desprovida de imagens: nenhum rosto, paisagem nem entidade, morta ou viva. Nenhuma memória aflorou, infantil ou mais recente.

Pode ser esse o sentimento oceânico de que falam, ou talvez seja assim que um feto no útero viva, sinta, perceba e pense, mas nada disso me ocorreu durante a viagem. Só havia uma sensação avassaladora de paz, aceitação, desinquietação e, de novo, quase uma indiferença.

Foi também aos poucos que a realidade corporal começou a retornar. Primeiro a reconexão paulatina com a respiração. Depois, mandíbula, com pés e mãos, mas ainda um tanto como apêndices de um corpo etéreo, sentido e não sentido, como se uma anestesia do dentista engolfasse o organismo todo.

O que antes era fusão completa com a música derivou para uma ressonância vívida, reconfortante, ainda anormal para os termos cotidianos. Com certeza busquei reproduzir melodia ou notas com esse corpo esquisito, como alguém que cantarola com a alma.

Nalgum ponto desse lento despertar tive a única das visões do dia: vi-me cercado de entidades maquinais, não sabia se inanimadas ou com vida interior, ovaladas, de superfície branca esmaltada com hastes, alavancas e botões cromados. Uma estética vagamente reminiscente do que um ilustrador do início do século 20 imaginaria ser um gabinete odontológico alienígena do século 22, foi como me ocorreu definir depois.

Já nesse meio despertar, uma música desencadeou instantes de puro júbilo, preenchendo o peito e a cabeça com um calor sobrenatural, exorbitante, que me pôs à beira das lágrimas, as quais no entanto não jorraram. Algo como um pranto seco de alegria. Sentir-se vivo e agradecido eram uma coisa só.

Muito lentamente, fomos voltando à vida, esta aqui. O terapeuta ofereceu-me água, que tomei deliciado. Depois trouxe pratos com frutas, e a primeira coisa que pus na boca foi uma amêndoa salgada –a melhor que já comi, concluí na hora.

Conversamos longamente sobre as experiências, eu mesmo atravessado pela sensação de claudicar, mal apoiado em palavras imperfeitas para alcançar o sentido pretendido. Felizes, rimos de nós mesmos e de nossas limitações.

*

Dez dias depois, a quatro horas de voo de São Francisco, estreei no contato com outra substância psicodélica, 5-MeO-DMT. Curiosamente, concluí que essa experiência isolada, decerto insuficiente para qualquer juízo definitivo, teve mais semelhança com a cetamina do que com outras viagens realizadas com a DMT de ayahuasca ou jurema-preta.

Originalmente, a 5-MeO-DMT era obtida no veneno do sapo-do-rio-colorado (Bufo alvarius, reclassificado como Incilius alvarius). Vaporizada e aspirada, desencadeia uma viagem de cerca de meia hora que muitos descrevem como radical.

Hoje o composto está disponível em forma sintética e, embora ilegal, pode ser adquirido em vaporizadores com aspecto semelhante a uma caneta. A empresa britânica Beckley PsyTech está testando o potencial terapêutico da 5-MeO-DMT para depressão.

Poderá ter pesado para a similaridade percebida com a cetamina o fato de minha “bufada” ter acontecido minutos depois da sessão de integração organizada pela equipe do Polaris. Mais uma vez por vídeo, ela foi conduzida por Schwartz e Gold.

Assim que terminou a chamada, empunhei a “caneta” vermelha com concentração 1:8 de 5-MeO-DMT e dei duas puxadas iniciais e retive o quanto pude a respiração. Comecei a sentir algo, mas, como ainda estava conseguindo falar, meu acompanhante recomendou mais uma, o que fiz já deitado na cama.

Em segundos senti a cabeça anuviada, o que vinha acompanhado de certa apreensão, que logo se dissipou. Foi uma viagem tranquila, sem medo, sem sobressalto, como a da cetamina, mas também sem muito conteúdo emocional óbvio.

Sensação de paz profunda. Imobilidade quase completa do corpo, como que a convicção de que não conseguiria movê-lo mesmo que quisesse –e definitivamente não queria. Cheguei a sentir certa indiferença concreta com relação a meus braços e pernas, indiferença física, “embodied”, por paradoxal que pareça.

Muito pouco visual, uma surpresa, pois imaginava que 5-MeO-DMT teria efeito feérico ao menos semelhante à DMT inalada. Certa escuridão, mas sem aflição. Mais à frente, houve uma passagem bem onírica e enigmática.

Vi-me num andar de edifício-garagem e tomei a decisão de caminhar sempre à direita, rente à parede externa, para dar a volta completa no perímetro, mas mal comecei e o “sonho” se dissipou. Concluí que se tratava de um resto diurno: pela manhã, meu anfitrião havia recomendado caminhar sempre pela esquerda numa trilha pavimentada das proximidades.

O “trip-sitter” estava de prontidão para se certificar de que eu decolara em paz. A sensação era boa, de leveza e uma felicidade indefinida. Sorria por dentro e, aparentemente, por fora, o que ele confirmou. Creio que a sessão de integração com o grupo do Polaris, imediatamente anterior, contribuiu para a boa viagem.

Havia gostado de ouvir de Schwartz que parecia ter-se dissolvido (com a cetamina) alguma estrutura de medo em minha personalidade, como se tivessem sido removidos obstáculos. Gostara também de ouvir de um dos companheiros de viagem que minha escrita havia se tornado mais literária.

A aterrissagem foi tranquila. Comecei a sentir os membros pesando novamente sobre a cama, com o lento dissipar daquela indiferença física. Mexi primeiro a boca e a mandíbula, como na experiência com cetamina. Depois tirei as mãos de cima da barriga e as pus ao lado do corpo. Movimentei mãos e pés, e decidi abrir os olhos mesmo quando ainda duvidava ser capaz de fazê-lo.

A experiência foi boa, mas não fantasticamente psicodélica nem radical. Ao mesmo tempo, foi impressionantemente terapêutica. Entende-se bem por que a 5-MeO-DMT e a cetamina podem auxiliar no resgate de pessoas deprimidas, embora tenha dúvidas sobre seu grau de eficácia caso a experiência ocorra sem o acompanhamento de terapeutas experientes como Schwartz e Gold.

O fim de semana do Dia das Mães, três dias após a 5-MeO-DMT e 12 após a cetamina, teve momentos arrebatadores de entrega aos netos, às filhas e a Claudia, como há muito não experimentava. Vivi minutos de plena paz e alegria com a neta mais nova no colo, que me levaram lágrimas aos olhos.

Na integração do Polaris, eu havia confessado certa “preguiça” pós-sessão com coisas de trabalho, mas já ao proferir a palavra fiquei insatisfeito com a escolha: era menos falta de vontade e mais a disposição serena de priorizar, a cada instante, o que pressentisse mais significativo, e constatar que havia espaço para NÃO atribuir maior prioridade à leitura e à escrita.

Fazer apenas o que precisava ser feito naquela hora, guiado pela intuição, sem pressa nem peso. Para um viciado em trabalho, pareceu ser a coisa mais próxima de um salto quântico.

O jornalista Marcelo Leite hospedou-se por quatro dias em São Francisco e participou da sessão no Polaris Insight Center a convite do Instituto Chacruna, do qual é conselheiro não remunerado.



Fonte: Folha de São Paulo

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